quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Dentista

Tive um problema com um dos dentes e ele quebrou, em dois momentos, ficando só com uma pontinha pendurada. Fui  a um dentista, emergência, e uma mocinha me atendeu, observando que a dor que eu sentia quando fechava a boca era resultado da pressão que a pontinha solta fazia contra a gengiva, por dentro. Sugeriu, como solução provisória, arrancar a pequena e incômoda lasca. Aí já tive um pressentimento do que estaria por vir, quando ela valeu-se de um alicate para extrair, abruptamente, o pedaço saliente, após uma rápida anestesia. Impressionou-me, confesso, a praticidade sem rodeios com a qual tratou meu doloroso trauma bucal. Marquei o retorno para dois dias depois.

Aquele consultório de pareceu, então, transformar-se em uma espécie de máquina do tempo, conforme o tratamento prosseguia. De início, pareceu-me que oferecia-me avançar na história, realizando um tratamento altamente tecnológico, obra prima da bioengenharia, com o implante de um pino de um metal nobre, titânio (ou seria adamantium?), em um procedimento simples e indolor. E que antes seria preciso, apenas, extrair a parte que restou do dente, basicamente a raiz, sem a parte de cima, a coroa do dente.

O consultório, asséptico, tinha ares modernos, com detalhes estilizados nas paredes e equipamentos modernos nos consultórios. Uma enfermeira pediu pra eu bochechar um treco, "sem enxaguar depois, tá?". Colocou uma touca na minha cabeça e algo parecido com a touca de cabelo no meu sapato (na verdade, eu estava de chinelo e o resultado ficou meio estranho). E então entrei na sala do dentista, um cara meio gordinho e loiro, parecido com o ator do filme "Capote". Um cara grande, registre-se, que realizaria ambos procedimentos, a extração e o implante.

Sentando na cadeira, contudo, a máquina do tempo retornou velozmente ao passado, e eu nem percebi.
Colocou um "campo" sobre mim, um pano com um furo, que delimita o espaço de trabalho do médico, ao mesmo tempo em que tampa a visão do paciente. Postou-se de um lado e pediu para uma enfermeira ficar do outro, com um sugador nas mãos e servindo também como instrumentadora. E observou que, como o dente em questão havia sido submetido a um tratamento de canal, ele "morreu", e estava calcificando-se no osso da mandíbula, o que poderia dificultar um pouco a extração. Deu-me algumas agulhada de anestesia, e pediu que eu abrisse "bem grande" a boca.

Pela fresta do campo pude ver que a primeira ferramenta que ele usou parecia uma chave de fenda, das grandes. Passou a fazer pressão sobre o dente, ao que parece procurando soltá-lo de sua base, e encontrou alguma dificuldade. Daí em diante o quadro só piora.

Pisou em um pedal e ergueu o encosto da cadeira, colocando-me quase sentado, e começou a fazer uma força crescente, agora usando duas daquelas "chaves de fenda". De fato, não doeu quase nada, a não ser em alguns pequenos pontos, de  forma discreta, e então mais anestesia era dada. Nesse momento já fiquei preocupado, e percebia-me um pouco tenso, e decidi colocar o braço para fora, a postos para ser levantando denunciando alguma dor mais forte. Meu primeiro susto, que é a confirmação do receio, aconteceu com o primeiro estalo que ouvi, quando percebi um solavanco com as chaves de fenda. Para ampliar o desconforto, não enxergava tudo o que estava acontecendo, e ficava meio fragilizado nessa condição de desconhecimento. Levantei a mão e perguntou-me se era "dor ou pressão".

Meu desconforto aumentou bastante quando depois de muito forçar a base (e minha gengiva), trocou de ferramenta, segurando então uma espécie de alicate de bico fino, com um vigoroso cabo serrilhado de aço inoxidável, e segurou uma saliência. Pensei que puxaria, apoiando-se nessa pegada, mas em pouco outros estalos, quando percebi estilhaços em minha boca. Percebi então uma tensão por todo o corpo, que retesava meus punhos e pernas. A enfermeira seguia frenética com seu sugador, e o dentista mudava de posição como quem procura um ponto de apoio melhor para fazer força.

A ideia era ir forçando para os lados, laceando a base, e o dentista ia alternando as ferramentas, entre o par de chaves de fenda, e às vezes uma ou outra chave era usada -isoladamente, e o alicate. Arrancar aquele dente parecia estar sendo mais difícil do que esperava-se, e essa percepção, mais difusa, alardeava-me intimamente. E passei a perceber que a gengiva, no local da intervenção, estava machucada, com bastante sangue. Conforme agonia se prolongava, minhas pernas iam se retorcendo, e meus braços apertavam os braços da cadeira com força.

Alguns estalos a mais, e o dentista pediu para a enfermeira um "fórceps 65 ou 69, para raiz". Ela procurou, não achou e pediu para outra enfermeira que procurasse com um colega. Nesse momento o dentista deu uma parada e disse que eu poderia descansar um pouco, e comentou "tá difícil mesmo tirar essa raiz. quando faz canal é assim...". Perguntei, já querendo ver logo o fim daquilo, se estávamos perto do fim. "40%".

Seguiu tentando lacear o dente, e puxar, quando veio com outra tentativa, qual seja quebrar partes do dente usando a broca. Aí fiquei realmente incomodado, e percebi que me retorcia na cadeira, enquanto notava um cheiro de queimado saindo de minha boca.

Nesse momento, minha própria disposição já tinha mudado. Não mais queria "só não passar dor". Queria mesmo que aquilo acabasse logo. Pensava em coisas como "será que sobreviveria à tortura?" e "nunca mais deixo de cuidar de meus dentes". Escorregava da cadeira e estava todo tenso, às vezes grunhindo de paúra. Não mais me importava com a crescente pressão sobre meus dentes e gengiva, com o buraco vertendo sangue na minha boca, com o cheiro de queimado, com a enfermeira maníaca do sugador, só queria que aquilo acabasse.

Foi quando, mesmo causando um pouco de dor, o dentista forçou e o dente finalmente cedeu, em um estalo um pouco mais acentuado. Pegou o fórceps e ainda precisou fazer alguma força para conseguir extrair essa primeira metade. Ato contínuo, forçou um pouco mais o segundo lado, já meio sem paciência, e esta logo cedeu, também estalando em um pequeno tranco, sendo finalmente retirado para meu alívio. Tive vontade de chorar, não de dor, mas pela violência cometida.

***

Para acabar, o implante. Depois de um breve descanso, com a boca latejando, mesmo anestesiada, e com o sangue vertendo (enquanto a enfermeira sugava a saliva e o sangue, insistentemente, obssessivamente), iniciou-se o implante, aproveitando a  "abertura" que havia.

Usou o motor convencional, esse de obturação, que aliás já tinha usado para quebrar o dente, adaptando uma broca em sua ponta, não fininha com aquela pontinha redonda, mas uma broca mesmo, certamente de um pequeno calibre, mas imaginei enxergar até os sulcos helicoidais típicos de brocas de madeira ou concreto. Ajustou minha posição na cadeira, e disse, testando a broca ao alcance de meus olhos, "agora será mais tranquilo".

Furou minha mandíbula e colocou um pino de metal no buraco, rosqueando.

Deu cinco pontos no buraco de minha gengiva.

Quando saí de lá senti uma tristeza profunda que demorou mais a passar do que minha dor. Pensei que poucas coisas podiam ser mais bárbaras do que descrever essa intervenção.