Depois da privatização das policias locais virar moda entre
os administradores ultra liberais, os próprios exércitos nacionais passaram a
ser geridos por empresas privadas. Uma vez que controlou esse ramo de negócios,
a Corporação aumentou sua ambição e promoveu golpe bem sucedido, primeiro nos
Estados Unidos. Seguindo o efeito de demonstração, outros países viraram
regiões dominados por empresas privadas.
"Nada nos deixa com medo", disse Kilma para o
pequeno grupo tático reunido em frente ao edifício da emissora universal de
sinais, "porque para nós só existe o futuro". Foi escolhida para
liderar essa ação porque sempre arruma um jeito de sair das confusões e porque
achavam que ela ficaria bem na TV. Era loira, alta, de grossos dreds na cabeça,
com alguns implantes luminosos no contorno do rosto e olhos embranquecidos, ou
seja, além de bela transparecia força e vontade, fundamental para manter
audiência.
Kilma era filha de pais outrora ricos que perderam tudo que
tinham já no início da grande crise econômica que pôs fim ao liberalismo.
Quando veio a guerra não tiveram muitas condições para resistir e ela assistiu
seus últimos parentes serem vítimas da grande seca que veio logo após a
bancarrota dos americanos. Comandava a equipe de infiltração depois de quatro
anos na clandestinidade imposta pelo golpe militar com o qual a Corporação
assumiu o poder.
A equipe de infiltração contava com dois batedores,
responsáveis pela proteção do grupo, mais um virtualista, que comandava a parte
informacional e técnica da missão e um destravador, que abria todos os portões,
senhas e códigos que encontrava. Esse agrupamento era responsável pela defesa e
pela viabilização da passagem até o objetivo. Além desses quatro, mais um
visualizador, que fazia a cobertura do fluxo informacional do entorno e um
especialista próprio para cada missão (nesse caso, um especialista em
multimídia de propagação viral), além de Kilma.
Levavam armas (não letais) modernas, mas que não se
comparavam com o poder de fogo (letal) das "equipes de dissuasão" da Corporação. Os quatro da contenção
traziam um armamento mais pesado, com granadas de paralisação e um grande
canhão de luz sólida, além de disruptores sônicos e alarmes de presença ligados
a lançadores de adesivo ultra forte. Todos os outros tinham um fuzil sônico e
uma pistola de transmissão elétrica, armas leves e eficazes, pois não obstante
a demora na recarga da primeira e a falta de precisão da segunda funcionavam
bem em conjunto, em geral com tiros elétricos difusos enquanto se aguarda o
diapasão do rifle sônico encher, o que certamente irá "desligar" o cérebro
do inimigo.
Os disruptores neurais (ou sônicos) eram uma das armas
preferidas dos rebeldes, pela sua precisão e eficiência, além do fato de não
serem letais. Disparavam uma onda sonora subsônica, que atingia vários alvos
simultaneamente, “desligando” temporariamente o sistema nervoso central. Seu
único defeito era que, a cada dez tiros curtos ou três longos, a arma precisava
de um período de recarga.
O primeiro andar é um grande hall de formato quadrado, com
quatro portas de entrada, de pé direito bastante alto, ladeado por inúmeras colunas
retangulares, estreitas e cumpridas. Nas laterais, entre uma coluna e outra tem
um elevador, somando mais de trinta elevadores de cada lado do hall. No fundo
um grande balcão, que tomava quase toda a extensão do fundo da sala, e de cada
lado desse balcão uma porta que leva à área de trabalho do prédio, com algumas
salas e escritório e uma saída para a escada de incêndio.
Os dois da contenção assumiram seus postos em cada uma das
portas de entrada da ponta, plantando um escudo elétrico em cada uma das
portas, além de espalharem algumas armadilhas pelo caminho. Os outros dois que
ficariam no pátio, o virtualista e o destravador, postaram-se junto dos escudos
e armaram o canhão de luz (arma que gera um campo sólido de fótons que atinge o
inimigo na velocidade da luz) no modo automático, e depois seus disruptores
sônicos.
A primeira dupla pretendia conseguir o mínimo de proteção
para poderem os segundos começar um tiroteio com as granadas de paralisação e
rajadas de plasma refletido. Com esse barulho todo, um pouco de sorte e a
costumeira incompetência das forças oficiais, poderiam conectar todos os
membros nas redes internas e abrir as passagens necessárias para que a missão
pudesse completar-se.
Os demais adiantavam-se em direção à porta do fundo do lado
esquerdo, que daria acesso em sua respectiva área de serviço à uma sala da
segurança com conexão aos sistemas de segurança. O plano era trocar para
elevadores determinados em andares sortidos, acima e abaixo, estando todos os
demais elevadores indo para andares aleatórios. Isso em uma torre com 60
elevadores e mais de cem andares confunde bastante se não se pode rastrear os
elevadores.
Os crachás falsos
serviram para passar pela portaria, mas logo os disruptores sônicos tiveram que
ser usados para derrubar os guardas que se mantinham fiéis à Corporação. Em um
momento de leve distração quase foi atingida por uma rajada de projéteis
perfurantes, quando percebeu de relance sua
imagem refletida no capacete do policial caído no caminho. Aos olhos do
policial, foi como um anjo da morte encarnado em uma beldade de dreds loiros,
olhos azuis, que corria em direção às escadas enquanto aguardava sua arma
recarregar.
Do outro lado da avenida, um pouco mais à frente do Parque
Trianon, uma pequena multidão se reunia, rezando de forma frenética pela alma
dos animais mortos em experimentos científicos ou usados como batedores em
guerras tribais. Vestidos todos de branco e com os rostos tatuados, mantinham
as tradições de auto imolação e amputação, mesmo proibidas pelo governo da
Corporação. Aliás, o que não era proibido pela Corporação? Alekei pensava
enquanto via os religiosos correndo da repressão enquanto alguns eram
destroçados pelas rajadas magnéticas da polícia.
Os membros da equipe de Kilma sabiam que morreriam
assim que a Corporação despachasse o armamento pesado e enfrentaram bravamente
os planadores de assalto com seus mísseis de atomização e a equipe de
ajustamento de conduta com suas carabinas de plasma. Os sacerdotes e convertidos
da Igreja ecológica da revelação digital também sabiam que seriam igualmente
reprimidos e chacinados, ainda com mais vigor do que agora. Mesmo os milhares
de pessoas que só estavam passando por ali estavam todas com muito medo da Corporação.
Assim que as equipes sociais se aproximaram do prédio o
cântico dos sacerdotes virtuais se avolumou, tensos de terror. Foi em um misto
de êxtase religioso, entre cantos e imolações, e a proximidade do massacre do
outro lado da rua, que um sacerdote, outrora Baalaor, percebeu o que estava
para acontecer. Pode assistir, bem próximo, o primeiro disparo de projéteis de
urânio, perfurantes e radioativos, descrevendo um arco luminoso até
arrebentarem em luz, som e violência, destroçando a parede do prédio.
O visualizador deu o aviso da aproximação das equipes de
dissuasão que começaram a estalar como estrelas em sua tela e correu para a
janela. Começou a disparar do vigésimo quarto andar, acertando as primeiras
bombas neurológicas no meio da infantaria que avançava protegida pelos
blindados. O virtualista então conseguiu concluir a conexão, destravou as
portas do caminho de Kilma e acessou os controles dos veículos blindados para convencimento
em massa travando seus sistemas de
propulsão aérea, atrasando sua chegada e evitando o combate direto contra eles.
De cada ponta da sala os batedores disparavam seus canhões derrubando soldados
e veículos aéreos leves. Esperavam que esse barulho todo conseguisse permitir
que o virtualista viabilizasse a chegada de Kilma e o especialista na torre,
para divulgarem a palavra em missão de marketing ideológico.
Depois de derrubarem os dois batedores com tiros de canhões
de plasma, derretendo-os, lançaram cargas eletromagnéticas que desestabilizaram
o virtualista e o visualizador, tornando-os alvos fáceis de abater no avanço
dos agentes de ordem e controle com suas carabinas biológicas. O prédio já
estava, nesse momento, cercado de forças de controle social. O destravador caiu
poucos segundos depois dos quatro primeiros, tão logo abriu a grande porta de
íons que protegia a aérea alvo.
Na rua, aquele que foi Baalaor é atingido nas costas mas
pouco se importa, pois aquele ferimento era, para ele, como um sinal da
revelação de seu destino. Quando a equipe de assalto invadiu o prédio, outro
grupo de agentes de controle social avançou para abrir um perímetro de
segurança, derrubando os transeuntes e também a reunião dos sacerdotes
virtuais. Junto com a elevação dos cânticos que os sacerdotes dedicavam aos
circuitos binários primários foi que Alekei, que passava na rua naquele
momento, cidadão paulistano, devidamente registrado e marcado com seu código
exclusivo de acompanhamento individual, teve que começar a correr para se
defender naquela confusão.
Alekei pode ouvir reverberar o ar com a mensagem que Kilma
fez correr pelos ares e redes, instantes antes dela estourar a própria cabeça
ao ver que seria irreparavelmente presa. Se fosse presa seria então, como todos
os prisioneiros violentos, propriedade da Corporação, e seria retalhada para testes
medicinais e científicos após horas de tortura. Preferiu, quando percebeu os
sacerdotes de alguma forma envolvidos naqueles eventos, sacrificar seu corpo à
divindade digital para preservar seu profile.
A mensagem falava da Fênix, de queimar para expurgar os
males, era a mensagem de Kilma, amor e genocídio como valor e método. Os
sacerdotes avançaram sacando armas brancas de reverberação, usando seus
implantes biônicos de força para esmagar seus alvos, os agentes de controle,
saltando para dentro dos planadores, entrando no metrô, derrubando os guardas e
entoando orações contra o domínio da Corporação. Alekei sentiu muito medo e,
mesmo assim, entrou no prédio, no movimento.