quarta-feira, 25 de novembro de 2015

SÓ POR TI POSSO SER

seu corpo está escondido nas sombras dos arcos da Lapa
nas minhas memórias mais profundas sublimes sacanas
minha traição é da profundidade do big bang
por isso me derreto em lágrimas sob os braços de cristo
e chamo teu nome em muitas línguas que desconheço

aguardo seu retorno como um morcego que persegue um eco
sua distância pesa-me como uma falta inexplicável
minhas faltas me consomem como um verme na carne podre
(e sou eu mesmo o verme e a carne)
e só consigo vagar como um zumbi entre bêbados

antes de dormir deliro e te construo nos meus detalhes
tormento que é o peso que aciona a lâmina da guilhotina
movimenta a máquina da loucura que transpõe os limites
conduz aos pântanos do paraíso, retira-me do meu animal
secreta uma substância pura de amor.


só por ti posso ser

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

SEM SENTIDO

Poesia é imagem, ilusionismo, mesmerismo
Palavras para algo que a palavra não alcança
Para revelar o que não se vê, o fantástico
Poesia não tem serventia para o óbvio

O capitalismo não faz sentido, para ele não há
poesia

A tragédia em Mariana, o mar de lama e lucros
Os atentados em Paris e os caças franceses
o pequeno menino turco nas areias da Europa
os mortos pela Polícia Militar e as mães em pranto

O capitalismo não faz poesia, para ele não há

sentido

sábado, 14 de novembro de 2015

Papai

Maior poema
Única palavra
Primeira vez:
Papai!
E chorou
Camões, Pessoa, Drummond.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A PM tem que acabar

Pequenino e brilhante, caminhava a criança
pelas ruas estreitas do complexo, de barro
Ia comprar bolinhas e sonhos na venda
moedas que mal cabiam na mãozinha

Sua fragilidade singela, seu futuro e seus pais
Tudo estraçalhado pela bala do fuzil da PM
Profanando toda a pureza em sangue
infestação de vermes, carne apodrecida, a morte

A poesia se afoga em uma gosma asquerosa
Hecatombe onde nada mais resta ou resiste
Só os escombros de edifícios e construções
e as lágrimas da mãe que chora desesperada.

O poeta também chora as crianças assassinadas
imigrantes, faveladas, negros e todos que clamam
Lamenta sua incapacidade, sua pequenez
A miséria de ser apenas um simples homem

enquanto uma chuva de pequenos cacos desaba
Os vidros e espelhos de nosso mundo se estilhaçam
cortando pele e convicções, sangrando o globo ocular

E o cheiro de tudo que sobra é azedo e desconfortável.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A CRIANÇA TURCA




















para Aylan e Galip Kurdi

Aquela criança fugia da guerra
morreu afogada na travessia.
Todas nossas crianças queridas
morreram afogadas na travessia
fugindo da guerra

Antes de sair de casa
sorria com o irmão e seu ursinho
a mãe lhe arrumou para passeio
bermudinha, camiseta, cabelo penteado
um beijinho antes de partir

Encontrou apenas desespero e morte,
(e não há pior que afogamento).
O petróleo e a geopolítica afogaram os sorrisos
dos dois irmãos com o ursinho de pelúcia
que iriam passear e encontrar papai

A humanidade morreu afogada na guerra
assassinou as crianças na travessia
de bermuda e camiseta, dormindo
acalantadas apenas pelo profundo oceano
distante de qualquer coisa de gente.


segunda-feira, 8 de junho de 2015

ARQUITETURA DA SOBREVIVÊNCIA

ou Ode ao tijolo baiano


simples barraco na periferia
paira sobre o barranco inclinado
dentro do horizonte ocre de tijolo baiano
barreira de improviso que escora
onde por de trás se habita
entre vielas, travessas, escadas
o córrego fétido rasgando o cotidiano.

na transição, contradição, esquina
encontra sua definição e forma de ser
(quem olha apenas um lado, não vê)
ali vive, enorme, muitos de amor e dor
mãos calejadas, seios, crianças diversas
existência como enfrentamento e aresta
que resiste e floresce mesmo que lodo
por de trás da barreira de tijolo baiano

e muito mais, porque o tijolo baiano traz
tal textura e composição, de suor e areia
que conforma outro tipo de realidade
mais concreta do que ossos esmagados
igualmente sublime, prenhe de esperança
que se impõe impávida no corredor estreito
contra o chão de terra, a água suja, a fome
e a mão imunda dos donos da cidade

terça-feira, 31 de março de 2015

SORRISO É ALEGRIA?

Sorriem os cães, para a carniça que chora
(ditado popular do Laos)

Gritei por José Faustino em humilde casa no difícil Jardim Keralux. Atendeu uma senhora que botou a cabeça na janela e, quando eu disse ser do fórum, prontamente dirigiu-se para a porta e veio, em uma postura serena, com a suave curiosidade de quem tem um estranho batendo em sua porta. Uma pequena ansiedade e nervosismo, entremeado pelo sorriso cortês que manda o decoro, típico da surpresa, de algum objeto escondido que irá se revelar.

- Seu Faustino, José Faustino, é aqui?

Disse que não era, mas de modo incerto, meio inseguro, meio seco. Esboçou um leve sorriso, e desconfiei do possível sinal de mentira. Perguntei seu nome, tudo bem? e disse bom dia. Insisti:

- Ele mora aqui, ou morava? A senhora conhece ele?

- O que aconteceu?

- Sou do fórum, preciso entregar um documento pra ele, de um processo.

- Como assim? Posso ver esse papel? O que que é?

- É pra ele. A senhora conhece? É um processo da fulana contra ele...

- Ele não mora mais aqui. Ela sabe disso. Porque que ela coloca o endereço aqui de casa, se ela sabe que ele não mora mais aqui? Quem deu esse endereço? Eu não tenho mais nada a ver com isso.

- Mas a senhora conhece ou não ele? Não é nada não, é só uma dívida, cobrança na justiça.

Aproximou-se do portão, apoiou na grade, olhou nos meus olhos e disse, calmamente, com um tranquilo sorriso no rosto, o mesmo sorriso que estava impregnado em seu rosto quando abriu a porta, quando disse não conhecê-lo. Um sorriso que era um alento e uma armadura:

- É um filho da puta, um desgraçado. Morou aqui um tempo, estuprou minhas filhas e acabou com a minha vida... (pausa angustiante) O senhor quer deixar alguma coisa aqui, quer que eu assine algo?

Disse, e não parou de sorrir um instante, enquanto me mandava embora com Deus.