sábado, 13 de dezembro de 2014

Teatro Mágico

Para meu amigo Gustavo

Havia uma bailarina voando
sobre a cabeça do palhaço
Havia música e sua consequência
sorrisos, piruetas e balanços
Havia pessoas e diferenças
Em um picadeiro de luz
Havia o que se via e se ouvia
E um pouco mais, substância éter
feita de beleza, sal e poesia
que recobriu a todas coisas e pessoas
verdadeiro como teatro, real como mágica

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Metrô

To com pressa, com licença
Existência em alta frequência
Asa de beija flor, microprocessador
Corredor esquerdo da escada do metrô

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O monge na cidade

O monge limpou o chão, arrumou suas vestes e sentou-se, em posição de meditação, e ali ficou por muitos milhares de anos. Permaneceu sentado, imóvel, sobre a mesma pedra na beirada do vale do rio grande, enquanto crescia em seu redor a enormidade da cidade, multiplicadora de pessoas e objetos despossuídos de sentido ou alma. Quanto maior a multidão solitária que o cercava, mais indistinto tornava-se, vibrando em tal frequência que seus limites físicos e espirituais atenuaram-se, tal que dissolvia sua presença como sal de frutas no copo d´água. Nesse instante, compreendeu todas as coisas do mundo, e sabia do futuro de todos os seres, mesmo dos que ainda não nasceram, ainda que nada pudesse dizer, pois a única coisa que esquecera foi a capacidade de falar, o que é diferente do domínio da linguagem. Voltava-se para dentro, como um enorme lago onde mergulhasse, e dali podia ver com mais detalhes o rastro dos movimentos das pessoas, o que havia de escondido em cada olhar, as meias palavras e as perversões mais íntimas. E ainda assim era o mesmo monge, mesmo que muito tempo se passasse, mesmo que em meio à muita gente se misturasse. E era esse mesmo monge quem observava a cidade que subia e os homens que passavam, mesmo que ele fosse apenas um outro entre tantos.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Busca e apreensão da menor Kauany

               "O MM. Juiz de direito da vara de família manda qualquer oficial de justiça que cumpra a busca e apreensão da menor ..."

Os demônios tão querendo alguma coisa, tão falando de mim, falando que vão tomar a minha filha, que vão me mandar pro hospício. E essa menina, aqui em casa, todo mundo diz que tá doente, que tem essa tal síndrome de Down. Eu só queria que deixassem a gente em paz, que Jesus vai salvar a gente. Aí, tão na porta de novo, me chamando...

Dona Maria, tem uma compra para a senhora aqui fora. É mesmo Dona Maria, abre a porta. Tem doação da Igreja para a senhora. Jesus mandou não abrir a porta hoje. Tá muito escuro, sempre está. Lembro quando ela abriu a porta, e eu ia naquele lugar cheio de crianças. Gostava mesmo quando saí na rua. Lá fora é  claro, cheiroso. Hoje ela tá ruim mesmo pastor, não quer nem abrir a porta. Não posso ficar mais minha filha, mas estou torcendo para que dê tudo certo. Deus vai interceder por ela.

Passa pela janela que é pouca compra, não posso abrir a porta. Aquele moço que a mãe chama de pastor veio aqui. Gosto dele, a mãe abre a porta. Será que está ali fora ainda? Acho que dormi e acordei de novo. Não, não quero abrir aporta. Eu odeio você. Eu não quero essa porcaria de queijo. Para, para de gritar mãe, que eu fico com medo. E ainda tá escuro, depois que eu abri os olhos. Ela não quer mesmo abrir, não adianta. Acho melhor esperar o oficial de justiça chegar, daí a gente vê o que faz. Cadê minha filha? Jesus disse pra não abrir a porta hoje para ninguém.

Chega pra cá minha filha. Tá com fome? Vou fritar frango e linguiça. E botar água para ferver. Vou fazer mandioquinha. Eu gosto de mandioquinha. Jesus que mandou. É meu pai que traz, entrega pela janela. O moço que a mãe chama de pastor também traz comida pra gente. Gostei quando vem minha outra mãe, que traz brinquedo. Meu pai e minha outra mãe moram em outro lugar, e minha mãe não gosta. Não gosta também de sair de casa, nem de brincar. Vamos esperar mais um pouco, que o oficial deve estar chegando. Vamos, vamos sair todos daqui de cima.

Minha filha, estão olhando pra gente. Sai daqui, sai, sai! Tem um monte de gente lá fora, será que vieram me visitar, me levar pra passear? São muitos demônios lá fora, vão pegar a gente. Se protege, sai de perto dessa janela menina, sai! Lá fora tá claro, dá pra correr. Não gosto de sempre só ficar aqui. É escuro, e tem bichinhos. Os bichinhos são chatos, não gosto dos bichinhos. Os demônios que estão virando bichinhos. Jesus mandou a porta ficar fechada. Bom dia, oficial. E aí, como vamos fazer? Eu? Eu não sei não. Achei que vocês do CAPS é que iam conduzir as coisas.

A senhora é parente dela? E ela não quer atender a senhora também? Nem ninguém mais, né? Bom dia seu Antônio. E aí, como estão as coisas? Sim, fique tranquilo, que vai dar tudo certo. Mas como ela está? Doente, né? Mas ela é brava, briga com os outros? Mãe, porque tem tanta gente lá fora? Tô vendo pelo buraquinho. Foram eles que trouxeram os bichinhos? Dona Maria, sou eu de novo. A senhora não vem aqui falar comigo? Não vou abrir a porta, eu não posso. Não, não poso! Saí daqui que você é amaldiçoado. Sai, sai!

Qual o plano então? Vamos ficar bem quietinhas, ehn?! Os demônios, essa gente toda lá fora. Vamos derrubar a porta e amarrar a mãe? Beleza, mas vocês tem certeza? E a menina, quem vai pegar? Tem que tomar cuidado que tem a o sofá bem perto da porta, pode cair em cima. Água fervendo é foda, ehn? Ela já tinha ameaçado de jogar outras vezes? Acho melhor a gente esperar mais ajuda, talvez chamar a polícia... Ai, eu queria falar com minha outra mãe. Amaldiçoados, estão querendo sujar a minha casa, entrar pelos buracos. Os bichinhos são demônios? Todo mundo lá fora é demônio. Jesus me falou para não abrir a porta.

Como eu gostei quando a porta ainda podia abrir, quando eu saía e ia na igreja, e ia na escola. Minha mãe gosta muito da igreja. Gosto daquele homem que a mãe chama de pastor, ele traz comida pra gente. Minha mãe fica boazinha quando fala com ele. Vou cozinhar alguma coisa pra gente comer, menina. Vou fritar frango com linguiça, ovo com bife. Cuidado aí na escada, é melhor esperar os bombeiros chegarem. Ela ameaçou jogar água fervendo, tem água na panela. Lá fora tem sol, eu não gosto do escuro e nem dos bichinhos. Vamos rezar, menina, rezar para ser abençoada. Só Jesus vai nos salvar dos demônios.

Não, não vou abrir a porta. Você não é ungido, não é meu amigo. Sai de perto da porta, Jesus mandou sair de perto. Vocês são todos amaldiçoados. Cadê o pastor? Como assim, você que é policial não vai abrir a porta? Porra mano, a mulher falou que vai jogar água fervendo. Vou é chamar os bombeiros. Calma aí que eles já vem. Os demônios não podem entrar aqui. Sai de perto da porta menina. Tá claro lá fora. Será que trouxeram alguma coisa pra mim? Eu queria sair, ver o que está acontecendo lá fora. Porque será que tem tanta gente aqui em casa? Vieram me visitar? Será que trouxeram alguma coisa para mim. Eu gosto de bonecas, mas a minha quebrou, tá sem a cabeça.

Ela estava melhor, chegou até a frequentar o CAPS. E a menina estava na escola. É, estava muito melhor do que hoje. Nem sei quanto tempo estão trancadas lá dentro, acho que quase um ano. Não deixo faltar nada, mas estou preocupado com elas. Ela é um boa mãe, cuida bem da criança. Pena que tem esse problema. Agradeço muito o senhor, está sendo muito atencioso, ajudando mesmo a gente. Minha esposa é que vai ficar com a menina. Amenina tem um problema, sabe, tem síndrome de Down, é meio assim. Eu fico muito triste com tudo isso. Fico pensando se não foi culpa minha, acabei saindo de casa. O senhor é meu pastor, nada faltará.

Malditos demônios, malditos. Mãe, tem gente lá fora. Porque a gente não fala com eles? Que luz estranha mãe, que barulho. Fica quieta aí menina, eles não gostam da gente, vão fazer maldade. Vamos rezar, minha filha, vamos rezar. E aí gente, o que está acontecendo? Água fervendo?!?! Porra, tenso, ehn?! Vamos entrar sim, prepara o equipamento de proteção. Pode deixar, vamos falar com ela. Vou falar que tô carente, duvido que ela não abra. Hahaha. Ai, moço, será que vamos conseguir agora? Vamos, meu amigo, vai ficar tudo bem, você vai ver.

Não, não quero falar com ninguém! Você é ungido? Não posso abrir a porta. Oi minha senhora, tudo bem? Me falaram que a senhora tá precisando de ajuda, vim aqui ver o que é. Sai daqui, foi o demônio quem mandou você vir. Leva embora os bichinhos que você trouxe. Calma minha senhora, vamos conversar. Não quero conversar com ninguém, vocês não são abençoados. Cadê o pastor? Quero falar com ele. Mãe, é um bombeiro. Que legal. Deixa ele entrar, vai?

Você não é meu amigo. Vim aqui para ajudar, seus parentes estão preocupados. Abre a porta pra mim, vai? Pode ver que não tenho nada comigo. Essa roupa? É que falaram que a senhora é brava. Se eu tirar o capacete a senhora abre a porta pra mim? Cuidado aí meu amigo. Se forçar a porta pode derrubar em cima de alguém ou de alguma coisa. Ai, o que será que ele está falando para ela? Olha, olha só, ele conseguiu entrar.


Vamos, minha filha, que Jesus está me chamando. Ele está no hospital, e pediu pra eu ficar lá um pouco, dando uma descansada. Falou que o médico vai cuidar de minha cabeça. Vou passear na rua. Nossa, que bonito é aqui fora. Tinha até me esquecido. Dá pra correr, tem o sol, várias pessoas e um monte de coisas. A rua é bonita, aqui fora é o lugar mais bonito do mundo. Você é ungido? Sabia que você era abençoado. Você é meu amigo.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Almoço

Bolinhas dançam
Mãos hábeis do menino de rua
Assisto pelo vidro do restaurante
Isolado da rua
E enfio o garfo na boca
Cheio de arroz, carne e desigualdade
Doce de leite de sobremesa
Observado por olhos que pedem algo
                               do outro lado
                                               do vidro

Mas que não posso ouvir.