terça-feira, 30 de junho de 2020

O ÚLTIMO JOGO

Joãozinho falou para seu colega de sala, todo orgulhoso: Meu pai foi no último jogo de futebol que teve torcida no estádio. O pequeno Davi tinha chegado com uma bola nova, tão bonita que brilhava. Queria ser amigo dele, tocar pra ele fazer gol, dar um abraço e correr para a torcida. Queria contar para ele a história do fantástico jogo no Itaquerão.

Mentira sua, falou Davi, sem querer saber dele. Faz muito tempo que não tem mais torcida no estádio, seu pai nem era vivo. Claro que era, se defendeu Joãozinho. Desde, sei lá, o século passado, tá tudo suspenso por causa do vírus, resolveu Davi. Joãozinho, triste e bravo, chorou com a desfeita. Saiu da escola com os olhos vermelhos, mas não disse palavra. O pai nunca tinha tempo para nada, Joãozinho não queria incomodar. Depois de um tempo caminhando em silêncio, acabou contando que o Davi não quis jogar com ele, e que tinha duvidado do jogo no Itaquerão. Mateus ficou triste junto do filho. Ninguém podia duvidar daquela história. Joãozinho só queria jogar bola. Pai, será que você pode jogar comigo? Só um pouquinho? Mateus estava muito atarefado, como sempre, pendurado no telefone, preocupado e correndo de um lado para o outro. Deu um sorriso distante para o filho. Mateus virou criança, de tantas saudades que sentiu, e o Itaquerão surgiu na sua frente, enorme e mágico. Ninguém podia duvidar daquela história. Até sentiu o pai segurando na sua mão, aquela presença intensa que o guiava pela vida, até o estádio. Saudades é mesmo uma coisa enorme. Como ia saber que aquela seria a última vez? Todo domingo, o velho Mário botava a camisa do Corinthians, branca e cheia de furinhos, escrito Kalunga em cima da barriga redonda, abria uma cerveja e chamava o filho para verem o jogo. Aquela hora era só dos dois. Tudo ficava parado lá fora, enquanto a bola rolava. Eles gritavam, pulavam, cantavam os gritos de torcida. O pai ficava igual um maluco, xingando os jogadores e brigando com o juiz. Torciam com toda força: Vai, vai, vai! Sai, zica! Toca, toca! Quando era gol, o pai ficava tão feliz que se abraçavam. Mateus assistia encantado aos jogos. Só queria ficar ao lado do pai. No começo, era apenas participar daquele momento, dividir a emoção, aquela entrega toda, tão alegre e especial. Mesmo se o time perdesse, gostava de estar ali, com o pai. Antes de entender sobre a vida e as derrotas, que as pessoas queridas morrem e os heróis são os que mais perdem, aprendeu sobre o futebol. Quando o pai ficava triste, Mateus não gostava. Queria que o time ganhasse, pro pai ficar feliz. Quando viu, já torcia pelo Corinthians. Depois do almoço de domingo, antes um pouco do jogo, Mateus falou queria ir ao estádio. Estava sonhando com isso faz tempo. O pai nem respondeu. Ele nunca respondia. Era uma pessoa calada e grande, um montanha de pedra. Olhava para o filho, quieto, com um sorriso distante na cara. Será que era pra ter feito essa pergunta? O pai assistia o jornal todo dia. Na hora dos esportes, Mateus ficava namorando os gols e olhando a torcida. Mas agora só ouvia falar desse coronavírus. De mal humor, o pai dizia que não tinha dinheiro para nada, e reclamava da doença e do governo. O coronavírus fez milhares de vítimas na China, e está se espalhando - disse a moça de cabelo bonito na televisão. O filho perguntou, depois de ver uma careta: O que foi, pai? Que é esse tal de coronga vírus? Não é nada, riu enquanto repetia o erro da criança. Jantaram arroz com bife, ovo e farinha. O pai não falou uma palavra, mas deixou o pequeno tomar toda a garrafa de guaraná. O pequeno Mateus era criado pelo velho Mário. Se virava meio sozinho, enquanto o pai trabalhava de pintor, ajudante de pedreiro, meia colher. Depois da escola, obrigação que não podia faltar, ficava a tarde toda na rua, esperando a hora do pai chegar em casa. Quando tinha jogo, torciam juntos. O Corinthians estava mal. Será por isso que ele estava sempre tão chateado? Ficava mal junto dele, que só fazia beber e fumar na frente do celular. Alguma coisa não estava legal. Em uma sexta-feira, o velho Mário chegou feliz em casa, radiante. Foi até estranho. Disse que tinha arrumado um emprego e que ia fazer uma surpresa para o Mateus. Estava falante como nunca, contando que tinha recebido um dinheiro, fazendo piada de tudo. Mateus também ficou inebriado. Queria muito saber qual era a surpresa tão anunciada, mas ele não falava de jeito nenhum. Calma, calma. Mal dormiu aquela noite. Passou o sábado agitado e, quando chegou a hora de deitar, Mateus não se aguentava mais. Já tinha acordado quando o pai bateu na porta do quarto, domingo de manhã, mandando vir para o café. Rápido, que a gente vai sair depois do almoço. É hoje a surpresa, menino. Foram de metrô, Mateus elétrico e o pai calado. Linha vermelha, sentido zona Leste. O pequeno perguntava: Já estamos chegando? O que é? Calma, calma, repetia o pai como uma canção de ninar. Joãozinho, vou te fazer uma surpresa, disse o pai. Esquece esse menino Davi. Foi uma explosão de alegria: O que é a surpresa? Mateus sabia como era a ansiedade que o filho sentia. O pequeno saltava, fazia perguntas por todos os lados, gritava de curiosidade. Calma, calma, recitava ecoando o velho Mário, que também lhe dizia desde aquela tarde distante: Calma, calma. O trem foi se enchendo de gente com a camisa do Corinthians, de risadas e expectativas, comentários sobre o jogo, palavrões proibidos que o pai falava, cantos de torcida que iam aumentando conforme iam se aproximando do destino. O estádio surgiu no horizonte como uma pirâmide, um monstro e uma maravilha, um exército em formação. Um elefante sorridente que convidava o menino para uma aventura incrível, lá no alto do morro. Mateus vibrava de alegria. O pai, que não era muito bom em ser feliz, deu um abraço meio desajeitado no filho. Preparado para ver o jogo? Saíram do metrô em Itaquera, naquela confusão. Passaram das catracas e estavam no meio de uma multidão em preto e branco. Mateus nunca tinha visto tanta gente junta antes. Olhava em torno, sem saber pra que lado ir, quando o pai puxou pelo braço e falou pra tomar cuidado, ficar ligeiro. O mundo balançava ao som da torcida, desde a passarela que sai do metrô e passa por cima da radial. Comeu um sanduíche de linguiça e tomou um guaraná, enquanto o pai escolheu um pernil e uma gelada. Quanto custa a camisa do timão, parceiro?, perguntou o velho Mário para um dos muitos vendedores que se espalhavam pelo caminho que contornava o morro em direção à entrada dos torcedores. No calor daquela tarde de domingo ensolarada, o pequeno coração do menino parecia com os fogos de artifício que subiam ao céu. Vestiu o manto, como disse o pai (nem sabia o que era manto), e seguiu de mãos dadas, o coração colado com o pai, que lhe sorria discretamente.
Passaram do portão, entraram no estacionamento, e o menino Mateus já podia sentir a vibração no ar. As pessoas sorriam para ele, tão bonitinho ao lado do pai, olhando para todos os lados, e perguntavam quanto é que seria o jogo. Respondia qualquer placar, cinco, seis, dez a zero. O pai ria alto. Dizem que o futebol é uma coisa mágica. Achou estranho ser revistado na entrada mas logo esqueceu, quando viu o campo, fantástico tapete mágico. O sol iluminava a arquibancada, e sentaram nos lugares marcados. Ficou olhando aquilo tudo: as torcidas organizadas eram uma força da natureza, o campo, brilhando mais que tela de vídeo game, e os jogadores, anunciados um a um, eram figurinhas prateadas que ganhavam vida. O pai, calado, sorria enquanto ouvia a escalação do time. Era Mateus, agora, quem levava o filho para o futebol. Não foram ao estádio, porque depois do vírus não tem mais jogo com torcida, mas iriam jogar bola, os dois. Nem sabia em que estado estava a quadra que ficava na praça perto de casa, mas isso pouco importava. No caminho, parou em uma loja e compraram uma bola, bem colorida, e uma camisa do Corinthians para o menino, que não serviu direito, ficou meio grande, como as saudades que sentia do pai. Dizem que o futebol é uma coisa mágica. Mateus era bom de bola quando criança. Jogou muita pelada na rua, e era um dos primeiros a ser escolhido no racha com os amigos. Mas fazia tempo que não jogava. Como o Corinthians daquela tarde de domingo, também não estava começando muito bem, chutando torto para o gol, errando os lances, respirando pesado cada vez que a bola saía pela lateral. Assim como o Novorizontino, time modesto e aguerrido do interior, Joãozinho também surpreendia, correndo muito e se esforçando para jogar bem. Era o jogo da vida deles. Mateus estava em êxtase. Pai, o que está escrito no placar? Pai, o que aqueles policiais estão fazendo de costas para o jogo? Pai, o que eles estão falando é palavrão? Pai, onde está a torcida do outro time? Pai, tô com sede. Pai, pai, pai… E o pai respondia tudo com poucas palavras, muitas vezes só passando a mão, calado, na cabeça do menino. Joãozinho adorava jogar bola, mas o pai nunca podia, sempre tinha que trabalhar. A quadra estava descuidada: a tela tinha uns buracos, as linhas pintadas no chão tinham estavam apagadas, e até tinha algumas rachaduras no chão de concreto. Era um estádio mais glorioso que o Itaquerão. Joãozinho corria, e o pai, que tinha até desligado o celular, rebatia. O velho Mário iria gostar de ver cena. Mesmo em marcha lenta, o Corinthians era melhor que o Novorizontino. O time do interior se defendia com todas suas forças, e o time da capital, mesmo com uma falta de vontade de dar raiva, ensaiava uns lances perigosos na área do outro time. O velho Mário brigava com os jogadores, xingava o juiz e os atacantes adversários, passava a mão na cabeça do filho Mateus e levantava para mais um canto da torcida. Vamos, vamos Corinthians, essa noite, teremos que ganhar. O pequeno também cantava com a torcida, e até repetia os palavrões proibidos, com toda força que conseguia. Em um dos bons poucos bons lances do Corinthians, o bom volante Cantillo roubou a bola no meio do campo, e os dois foram se levantando lentamente, inclinando o corpo em direção do campo como um animais prontos para o bote. Cantillo tocou para Pedrinho, enfiado entre os zagueiros, que lançou Vagner Love de primeira. O estádio inteiro respirou fundo, e até as colunas de concreto ficaram mais tensas quando o atacante recebeu a bola na lateral, avançou, cortou para o meio e rolou a bola para trás, de volta para Pedrinho. O tempo congelou quando o atacante jovem e magrelo do Corinthians chutou, com força, da entrada da área, e explodiu quando a bola entrou. A arquibancada vibrou e o pai abraçou e beijou Mateus. Mas o pai se calou de repente, e Mateus ficou sem entender o que estava acontecendo. Todo o estádio murchou. Não dá pra acreditar que vão chamar essa merda do VAR, esbravejava o pai. Mateus nem sabia o que era isso, mas logo entendeu que não era coisa boa. A porcaria do juiz anulou o gol. Mateus não acreditava. Xingou um palavrão horrível, e o pai nem falou nada. Será que ele voltaria a ficar triste, como tinha andado nos últimos tempos? Não ficou. Como uma onda gigante, a torcida se levantou, e até o sol se assustou. O pai ficou logo de pé, e começaram a cantar: Timão, eô! O jogo estava difícil. O Corinthians, jogando mal, não conseguia vencer a defesa do Novorizontino. Léo Baiano ganhava todas no meio, e o zagueiro Bruno Aguiar comandava a área. O time da capital não se conformava, ficava cada vez mais irritado e afobado, errando mais e mais. Em um desses erros, o inevitável aconteceu. A bola perdida no meio, Léo Baiano avançou, o menino respirando rápido se levantou, Capixaba e Léo Santiago corriam pelas pontas, o pai gritava para que alguém chegasse, os zagueiros do Corinthians recuavam tentando fechar, a arquibancada em pânico. Capixaba recebeu a bola e ultrapassou Fagner, cruzando no meio da área, uma bomba que encontrou o pé amaldiçoado do atacante caipira Léo Santiago. Atingiu a meta do goleiro Cássio como um tiro, uma despedida, uma pedra no rim. Gol do Novorizontino. Mateus não acreditava no que estava acontecendo. Ficou triste e preocupado. O pai caiu na cadeira, lutador nocauteado, e passou a mão no rosto. Respirou fundo e se encheu de toda a desgraça da vida. Foi quando a torcida organizada, com seus bumbos e cantos, se levantou mais uma vez. Que coisa linda as bandeiras tremeluzindo, aquela massa de pessoas vibrando e empurrando, cantando pelo time, um vulcão jorrando lava sobre o campo, iluminando a tristeza até virar paixão. O juiz apitou o final do primeiro tempo. No intervalo, o velho Mário botou o menino no ombro, e foi até o canto, colando na grade bem próximo das torcidas organizadas. Ali, até o ar balançava com o grito desesperado de milhares de corações corintianos. Aqui tem um bando de louco, louco por ti Corinthians. Empurrado pela nação, o time avançava, atacava, fazia chuveirinho na área, ciscava na frente do gol. Mas a bola não entrava. O pai estava inquieto, insatisfeito, e Joãozinho não conseguia mais ficar parado na cadeira. Podia ter só sete anos, mas cantava para empurrar o time, para dar força ao pai, para que tudo acabasse bem. O jogo estava chegando no final, se transformando em uma tortura, um castigo, uma provação. Luan bateu escanteio para o Corinthians do lado direito, a torcida cantando pra valer, ajudando a levar a bola, que girava como o planeta, e o pequeno Mateus viu, em cima dos ombros do pai, o zagueiro corintiano Gil subindo na marca do pênalti entre os defensores, como um monumento, um messias, acertando na bola com a testa, com a decisão de Deus e o jeito do Rui Chapéu. Gol. Empatou. Não dava tempo para mais nada, o juiz apitou o final da partida. Dizem que o futebol é uma coisa mágica. A bola veio rolando no meio da quadra. Mateus lembrou do gol do Pedrinho, anulado pelo VAR, e se preparou. Agora estava com seu filho, e suas memórias pulavam como a torcida do Corinthians naquele domingo. O velho Mário morreu do vírus algumas semanas depois, e Mateus nunca mais pode assistir um jogo com ele, nem lhe apresentar o neto. Acertou um chute três dedos, da entrada da área, sem chance para o goleiro. Joãozinho vibrou, deu um salto de alegria. Tomaram um guaraná, que estava guardado na mochila, vestiram suas luvas e máscaras e voltaram para casa: - Esquece esse menino Davi. Seu avô, o velho Mário, ficaria orgulhoso te vendo jogar - disse Mateus, enquanto passava a mão na cabeça do filho. Joãozinho lhe sorria em resposta, dentro daquela camisa muito maior que ele.



quinta-feira, 18 de junho de 2020

QUARENTENA NO MOINHO

A rua fedia a mijo e podridão. O cheiro gosmento de miséria escondia o aroma  sensual dos vírus e bactérias que infestavam a região. Enquanto atravessava a multidão de drogados e mendigos, espalhados pelas calçadas, deitados no chão, Jessica lamentava a noite mal dormida, febril e prenhe de calafrios, praguejando contra a vida. O nascer do sol estava bonito como uma hemorragia celeste. O frio da madrugada estava diminuindo, e começou a fazer calor dentro do casaco amarelo de plástico impermeável. Passou álcool nas mãos e ajeitou a máscara assim que entrou na estação de trem. Será que esse álcool que o Juninho vendeu é confiável?
Saía todos os dias do cômodo onde morava na Favela do Moinho, junto dos trens e do barulho, com a noite ainda escura e os dois filhos dormindo. Trabalhava como faxineira, prestadora de serviços, em uma empresa de limpeza de imóveis de luxo. No caminho para a estação Julio Prestes, para pegar o trem com destino à zona sul, atravessava a Praça Princesa Isabel, com aquela imensa estátua de um cavalo desfigurado, meio arrebentado. Morando em barracas improvisadas, homens e mulheres faziam suas necessidades por toda parte, e o fedor atravessa o ar como uma adaga, um cadáver. Muitos criavam pequenos animais, e em um dos cantos funcionava uma feira de produtos roubados e comidas estranhas (as possíveis).
Estava preocupada com as inspeções sanitárias no caminho para o trabalho. Se fosse diagnosticada com alguma doença, teria que ficar em casa, e daí não ganharia o dia de serviço. O salário, que já era pouco, não ia dar para o mês todo. Lavou a mão outra vez com álcool gel e se dirigiu para os bloqueios. Logo atrás das catracas, uma fila de soldados com pistolas de teste nas mãos verificavam a temperatura de todos. Qualquer variação e a pessoa seria conduzida para a quarentena - dizem que para exames e registro.
Precisava chegar no trabalho, ia se atrasar desse jeito. Seguia na fila da catraca de cabeça baixa, sem chamar a atenção. Se os guardas não reparassem nela, talvez nem fosse testada, no meio daquela multidão de máscaras e celulares. O guarda apontou o termômetro na sua cabeça, e olhou com suspense para o mostrador. Depois de um instante de agonia, mandou ela passar, todo grosseiro, como se tivesse ficado frustrado com o negativo do teste.
***
No quadro dos funcionários, sua escala de trabalho estava diferente, mas não reclamou. Afinal, pouco importa de quem é a sujeira que vai limpar. Seu irmão, Helinho, é segurança de banco, corre muito risco para ganhar pouco, e o resto da família está toda desempregada, vivendo de bico, criando pequenos animais (porcos, galinhas), vendendo o almoço para comprar a janta. Ela pelo menos tinha casa, e precisava continuar trabalhando para manter esse mínimo de dignidade. Geralmente era escalada para limpar o mesmo condomínio, onde já a conheciam e sabiam que era limpinha e honesta, mas dessa vez foi diferente. Tanto faz. O que importa é trabalhar. Se perdesse o emprego, talvez tivesse que ir morar em uma barraca, ou algo assim.
Primeiro foi escalada para limpar um endereço comercial, o que não era comum: um escritório de advocacia grande e chic. Não gostou daquele ambiente frio e liso: preferia limpar casas e apartamentos. Os advogados, a maioria jovem, muito bem vestidos e sorridentes, pouco conversavam. No grande salão no último andar de um prédio espelhado, Jéssica se preocupava em limpar as bancadas com os computadores, o espaço da máquina de café, os arredores da mesa de reunião. Um ambiente gelado, o ar condicionado no último, tudo muito sério e sóbrio. Gente importante, pensava Jéssica, enquanto esfregava os braços de frio e passava as costas das mãos no nariz que estava escorrendo. Uma janela imensa, aberta para a cidade, observava tudo pelo alto.
Naquele frio silencioso, sentiu que estava sendo vigiada, como se tivesse fazendo algo errado, ou estivesse com as calças sujas. Sem aviso, um funcionário de máscara fechada, macacão de proteção e luvas amarelas disse para Jéssica que ela teria que fazer um exame. Assustada, recuou e colocou a vassoura entre eles, se protegendo, mas foi abordada por trás por dois guardas, fortes e embrulhados em roupas laranja, que logo a dominaram e espetaram uma agulha em seu braço. Tinha mesmo notado que uma jovem advogada, de vestido preto e salto alto, fez uma cara de susto ao vê-la, mas achou que fosse só o nojo de sempre. Só pode sair da sala pra onde foi empurrada, para terminar a limpeza, quando recebeu o resultado negativo do teste.
Na parte da tarde foi para um bairro mais afastado, um condomínio de rico cheio de guardas e guaritas. A limpeza agora era em uma mansão imensa, com colunas na entrada e um enorme jardim na frente, cheio de carros grandes. Foi recebida pela governanta, uma mulher alta e de cara fechada, que usava luvas de borracha e um avental branco, além da máscara e uma certo ar de superioridade. Teresa, com alguma distância, orientou Jéssica a limpar os quartos do casal e das crianças, e avisou que os meninos estavam doentes, descansando. Jéssica ficou um pouco preocupada, mas a governanta foi firme quando disse que a limpeza tinha que ser feita, deixando claro que não queria saber de reclamação.
Subiu as escadas para limpar o quarto dos doentes, mastigando sua indignação, redobrando a atenção com todo seu medo e ódio. Que será que eles tinham? Será que era contagioso? Se ficasse doente, não poderia ir trabalhar, o seria um problemão, uma grana que não dava pra perder. Tinha um verdadeiro hospital instalado ali, e não deixou de notar a cara de preocupação das enfermeiras. Mesmo assustada, apertou sua máscara e limpou tudo com o máximo de cuidado. Observava metodicamente todos os lugares onde encostava, vigiava sua postura para não tocar no rosto, passava álcool em gel nas mãos até arder. Mas ficava sempre com a impressão que algum detalhe tinha passado despercebido, que o álcool não seria suficiente, que a máscara não era adequada. Foi embora um pouco mais cedo, com uma boa gorjeta e a recomendação de não comentar com ninguém sobre os doentes. Talvez pudesse até ser chamada outras vezes, para outro período curto de trabalho com um extra muito interessante. A governanta falava disso como uma proposta irrecusável. E era mesmo. Também era um suborno, mas podia conviver com isso.
Na volta para casa, pegou um ônibus lotado até o terminal de trem, em Santo Amaro, mais lotado ainda. Ficou com medo da aglomeração. Desceu na estação Júlio Prestes, depois de muitas baldeações, passou álcool nas mãos, apertou sua bolsa contra o corpo e saiu marchando pela rua. Já durante o aperto da viagem começou a se sentir mal, como se o incômodo que a impediu de dormir à noite tivesse retornado com mais força. Devia procurar um médico, mas não tinha tempo ou dinheiro.
Jéssica foi piorando. A febre não cedeu e a tosse só aumentou, e agora estava com falta de ar e dor no peito. Pegou um adiantamento no trabalho e resolveu que não dava mais para esperar. Na praça tinha uma feira onde era vendido de tudo, inclusive consultas médicas e remédios para desesperados. O serviço, mesmo ilegal, era muito procurado, e, apesar de ser pouco confiável, era caro. Jéssica foi atendida por um médico de cabelos brancos, depois de muito tempo de espera e negociação. O consultório de Isaque era um par de cadeiras com uma maca ao fundo, incomodamente à mostra de quem quer que passasse pela rua. Entrevistou Jéssica com uma voz serena que brotava do fundo de sua de sua pele negra, abafada pela máscara. Perguntou dos sintomas e pediu para medir a temperatura:
- Sinto dizer, mas tem um novo vírus por aí - disse o médico, calmamente, passando a mão devagar na testa - Como sabe, a política é sempre abafar, pra evitar o pânico e manter as pessoas trabalhando. Mas dessa vez é perigoso mesmo.
- Um novo vírus? Como assim? Eu estou doente? - perguntou Jéssica, falando mais alto e desafinando um pouco.
- Aparentemente. Não dá pra saber com exatidão, porque não tem teste disponível, mas tudo indica que sim - disse o médico com a mesma calma fingida, e seguiu explicando - É um vírus que veio da Europa, coisa de gente grã fina. Como você trabalha com esse povo, é bem possível que tenha sido infectada. Os sintomas são os mesmos, e sua febre está aumentando, junto da infecção no pulmão.
- Mas eu não posso ficar doente. Preciso sustentar a minha casa. Se eu ficar doente, não vou poder trabalhar, e vou ser demitida - lamentava Jéssica, com os olhos esbugalhados e as mãos se agitando - O que aconteceu, como será que eu peguei? Por que essa mais essa desgraça agora, meu deus?
- Minha senhora, ficar doente não é uma escolha - disse o médico em um tom firme - Também não dá pra saber como pegou, nem sei se isso interessa muito. Agora, não tem outra coisa pra fazer a não se tratar, descansar, comer minimamente bem.
- Eu não posso fazer nada disso. Simplesmente não posso. Não posso perder meu emprego, e muito menos posso ficar em casa, doente, descansando. Ai, moço, não sei o que fazer - disse Jéssica enquanto escapavam algumas lágrimas.
- Eu acho que consigo ajudar você a ir trabalhar - falou como se suspirasse - Te dar um antitérmico e um interferon. Por um pequeno valor a mais na consulta, claro. Mas, pelo que me disse, não vejo alternativa para você.
- Isso vai me curar, doutor?
- Não vai curar nada. Nem remédio para o novo vírus existe ainda - disse Isaque com uma honestidade impactante - Ninguém nem sabe muito bem que vírus é esse ou como é que a gente pode tratar essa coisa. Mas dá para  atacar os sintomas. Você vai conseguir ir trabalhar, pelo menos por um tempo. E vai parecer melhor, que é mais importante. E a gente torce pra você não piorar muito, principalmente quando estiver lá fora - falou enquanto apertava os olhos já cansados, já preenchendo uma receita e pegando um remédio em uma caixa atrás da sua cadeira.
Saiu da consulta ainda pior, carregando a preocupação e, agora, também a doença. Precisava conseguir ir trabalhar pelo menos mais alguns dias, nessa casa nova que pagava mais (apesar dos perigos), pra fazer um dinheiro, se preparar para a hora mais difícil que viria logo. Tinha conseguido atravessar as últimas epidemias. Depois da fase do medo, muita gente ficaria doente, as coisas iam apertar, e o controle do governo ia espremer a comunidade, igual bagaço de laranja. Precisava de uma reserva de dinheiro e de mantimentos, precisava estar pronta para tudo.
Lembrou dos seus filhos, que deviam estar em casa, mesmo contra todos os seus pedidos para que ficassem na casa da avó. Mesmo preocupada, tinha o coração sempre aquecido por aqueles meninos. Que Deus abençoe. E agora, que sabia que estava doente, o que fazer? Os meninos não podem pegar essa praga, não ia suportar infectar os próprios filhos. Podia até ouvir a voz de Esaú dizendo que não ia dar nada, apoiado na soleira da porta, fumando, e Jacó reclamando do outro lado, de cabeça baixa enquanto ajeitava a cama para a mãe descansar. Não tinha o que fazer, pensava enquanto caminhava entre as barracas na praça de volta para casa.
***
Conseguiu passar bem a semana com os remédios receitados por Isaque. Ele não vale nada, mas é bom no que faz. Mas, na segunda-feira, quase não conseguiu levantar da cama. Seu corpo estava quente e amolecido, sua cabeça estava pesada e congestionada. Estava enjoada, com dor de barriga, muita tosse e falta de ar. Só que precisava ir trabalhar. O chefe já tinha avisado que quem faltasse ia ser mandado embora. Não podia perder esse emprego de jeito nenhum. Tinha que conseguir, pelo menos até que fosse decretado o isolamento total. Só mais um pouco.
Acordou cedo no outro dia, e os meninos ainda estavam dormindo. Comeu algumas bolachas de água e sal, acompanhadas de um preparado à base de leite e café. Lavou as mãos e o rosto, enxaguou a boca e tomou uma dose cavalar de remédios - antitérmico, antiviral, analgésico e até um ansiolítico. Será que prestam esses remédios que o Juninho vende? Já tinha ficado muito doente nas outras pandemias, mas sobreviveu. Beto, que morava com ela e ajudava na casa, morreu faz quatro anos, na epidemia de sarampo. Foi difícil. Mas doeu mesmo quando morreu seu primeiro filho, doente, e o segundo, de fome, durante o último isolamento total. Não podia deixar mais isso acontecer. Precisava ir trabalhar, custe o que custar.
Ficou meio dopada com os remédios todos que tomou, mas pelo menos conseguiu sair de casa. Afinal, é pra isso que os remédios servem, te colocar em pé para ir trabalhar. Quando chegou na estação Julio Prestes, estava com a visão turva e um pouco tonta. Nem viu os guardas atrás das catracas, mas lembrou que eles existiam e aprumou o corpo, ajeitando a máscara e olhando para frente, com firmeza. Não podia ser pega, de jeito nenhum. Assim que passou a linha dos bloqueios, deu uma bela tropeçada, arruinando sua discrição e caindo sobre as pessoas que estavam à sua frente.
Os guardas da estação, rinocerontes de uniforme negro, levantaram seus escudos e se protegeram do movimento da massa de pessoas se deslocando. Com sua queda, Jéssica acabou empurrando outras pessoas na sua frente na fila, que caíram sobre os guardas, causando um pequeno tumulto. A fila continuou andando, e Jéssica seguiu junto. Nem percebeu que passou pelos guardas sem ser examinada, enquanto a fila se reorganizava e os guardas retomavam a sua posição, empurrando as pessoas e apontando os termômetros na cara delas. Jéssica entrou no trem e passou álcool nas mãos. Sua tosse ecoava na tosse de outras pessoas doentes dentro do vagão. Nas telas de anúncios, avisos sobre higiene pessoal e cuidados com o vírus.
Como o escritório de advocacia estava fechado, naquela manhã Jéssica foi direto para a mansão. A situação por lá estava cada vez pior. O cheiro de doença atravessava as colunas gregas e impregnava o jardim cheio de carros importados e flores ressecadas. A governanta não atendia mais a porta, porque também tinha ficado doente. O pai até tentou cuidar das coisas, com todos os outros membros da família de cama, mas ele também acabou ficando mal recentemente. A casa não estava cercada pelas forças da vigilância sanitária, como acontecia onde ela morava. Entrou e dirigiu-se para o quarto, que ela limpava com cada vez mais cuidado e medo.
O cheiro de carne podre invadia o ambiente e impregnou na sua máscara. O corpo do irmão falecido, que não podia ser removido sem avisar a vigilância sanitária, já estava em avançada decomposição. Podre mesmo, cheio de bicho, se desfazendo, fedendo e lembrando a todos da doença. Ao seu lado, os dois irmãos, de fraldas e acamados, com cuidados precários, pioraram muito desde que a governanta se afastou. Além das macas, e de um conjunto de aparelhos médicos, o quarto estava uma bagunça, muito sujo: uma pilha de roupa usada em cima de uma cadeira, as fraldas nojentas amontoadas no canto, transbordando do lixo, e até marcas de secreções espalhadas pelas paredes. A janela, fechada para diminuir o fedor na vizinhança, compactava o ar irrespirável, cáustico, deixando Jéssica com vontade de vomitar.
Ajudou a trocar os dois meninos, com muita dificuldade, e cobriu melhor o irmão morto. Nessa hora, ouviu o pai das crianças gritando do outro quarto, pedindo ajuda. Jessica demorou a atender, achando que eram os pedidos folgados de sempre. O velho gritou mais uma vez, arranjando forças não sei da onde. A essa altura, já não havia mais ninguém trabalhando na casa, nenhuma enfermeira ou cuidadora fixa. Jéssica atravessou o corredor e entrou no quarto do casal. A senhora, muito magra, com os olhos pulando das órbitas, espumava sangue e se debatia em uma violenta convulsão. O velho estava desesperado e não sabia o que fazer, ainda mais sem funcionários. Jéssica também não sabia o que fazer, e fugiu desesperada. Saiu correndo, com a mão na máscara, como se fosse tampar a doença, com a qual tinha convivido de perto por tanto tempo. Voltou pra casa, chorando e tossindo.
***
No caminho de volta, muito menos gente que de costume. Desceu na estação Julio Prestes, atravessou com medo a concentração de usuários de drogas - o fluxo - que estava por ali aqueles dias. Como será que esse povo sobrevive nessas condições? Será que não ficam doentes, que adquiriram alguma espécie de mutação, algum super poder ao contrário? Sentia-se cada vez mais doente, tossindo muito, com febre e moleza, caminhando de volta para casa. Os comércios fechados, o transporte vazio, o barulho dos passarinhos dava uma estranha sensação de que o mundo tinha parado.
No Moinho não tinha quarentena. O sol quente iluminava as ruas e vielas cheias de gente que ia e voltava do trabalho - faxineiras, seguranças, enfermeiras, garis e lixeiros, pequenos traficantes. Na frente dos barracos, humildes e apertados, as pessoas se reuniam para conversar sobre a nova doença que estava chegando. Crianças passavam correndo sobre as poças d’água, cachorros mexiam no lixo, e o boteco estava cheio desde antes da hora do almoço. Ficou preocupada com os filhos, que estavam há dias sem trabalhar, e imaginava o que podiam estar fazendo.
O caminho também estava mais sujo e descuidado. O lixo acumulado na esquina, próxima da entrada da favela, bem junto da saída do viaduto, se espalhava ocupando a calçada e a rua. Jessica logo percebeu que estava faltando água quando viu a imensa fila se formando ao lado do muro da escola. A raiva subiu das entranhas. Teria que voltar até ali, de lata na mão, e camelar com a água de volta para casa, depois de tudo o que tinha passado naquele dia infernal. Pelas ruas, além do lixo, muitas ambulâncias, policiais, agentes de saúde. Certamente, alguma coisa estava para acontecer, mas só pensava em chegar em casa e descansar.
Torcia, agora, para que pelo menos tivesse luz. Seu barraco puxava a energia do poste da rua, assim como seus vizinhos. Pela movimentação nas portas dos barracos, gente de toda sorte que não podia ficar em casa, logo notou que também ficaria no escuro. O efeito dos remédios estava passando, e sentia cada vez mais pior. Não teria forças para buscar água, nem que quisesse. Deitou na cama, torcendo para a bateria do celular durar até o despertador tocar no outro dia. E para que conseguisse sobreviver àquela noite.
***
No outro dia, a favela todo amanheceu cercada. A luz do giroflex e o barulho das sirenes anunciavam o toque de recolher. As forças de segurança tinham fechado tudo, ninguém entra e ninguém sai do Moinho. A polícia sanitária foi acionada, com seus uniformes de astronauta e caminhões prateados. Para sair é preciso apresentar alguma justificativa: uma receita médica, a carteira de trabalho, alguma autorização judicial. Quem fosse pego pra fora sem justificativa seria preso. Dizem que seriam usados nos testes para as novas vacinas. Jéssica já tinha visto isso em outros anos, e sabia que as coisas ainda iam ficar muito piores.
A manhã ainda estava fria quando saiu para ir à farmácia. Tinha dormido mal, mas fingia estar melhor. Não queria deixar os meninos preocupados. No caminho, dois rapazes com idade para serem seus filhos passaram em uma moto. Sem capacete, foram parados pela polícia sanitária e obrigados a voltar, não sem um belo de um esculacho. Uma jovem guarda, com megafone nas mão, gritava para as pessoas avisando, com a simpatia que conseguia, do bloqueio que fechava o bairro. O comandante da operação explicava para um grupo de senhoras que pareciam querer ir à igreja, com uma estranha tranquilidade no meio daquele caos, que era melhor pedir à Deus de casa mesmo, enquanto elas levantavam as mãos para o céu. 
Na linha de contenção, uma cerca de cavaletes e guardas armados que isolava o bairro do resto do mundo, disse que precisava comprar remédios, mostrando sua receita. O guarda nem deu atenção pra ela, só mandou se afastar balançando a mão, apontando para o lado. Em longas filas, pessoas pretas e pardas pedia autorização para sair, olhando para baixo enquanto eram verificados pela polícia sanitária. Jéssica viu os guardas analisando os documentos de uma senhora grisalha, revistando um jovem magro na outra fila, e mexendo, mais à frente, com a moça bonita vestida de branco, que deveria ser enfermeira ou babá. Alguns pedintes esmolavam por ali mesmo, mas ninguém ajudava. Depois de aguardar um tempo na fila, resolveu voltar para casa, quando notou que quase ninguém estava conseguindo sair.
Ficou puta, e voltou para casa reclamando, alternando resmungos e gritos de raiva. “Essa podridão dessa doença não veio daqui. E agora a gente que tem que se foder, com essa merda de bloqueio. Lá no outro lado os ricos não estão trancados, vigiados, com uma coleira no pescoço. Tenho certeza que foi um porra desses que trouxe essa sujeira de vírus para cá. Eu lembro do médico falando, e vi, com esses olhos que a terra há de comer, a situação dos doentes daquela mansão”.
Tinha que passar no mercado, mas quase desistiu quando viu o tamanho da fila. Só entrou porque não tinha outra alternativa: precisava comprar um pouco de comida e uns produtos de limpeza, pelo menos. Do lado de dentro, uma pequena guerra civil estava sendo travada, entre senhoras que lutavam pelos vidros de desinfetante e álcool em gel, os seguranças que queriam evitar os pequenos e inevitáveis furtos e os jovens preocupados com seu estoque de papel higiênico. O dono, na porta, observava tudo com os braços cruzados e a cara fechada. Jéssica conseguiu um pouco de arroz e frango, ovos e água sanitária, por um preço bem maior que na semana passada.
A favela tinha virado um caldeirão, onde fervia toda aquela pobreza no caldo do isolamento total. Uma ambulância recolhia um corpo, que saía carregado pelos familiares, enrolado em um lençol. Quanto tempo teria ficado dentro da casa? Em breve, corpos estariam empilhados pelas ruas. Finalmente chegou no seu barraco, onde estavam seus dois meninos deitados na cama, assistindo TV, com cara de assustados, passarinhos querendo a asa da mãe. O telejornal falava da epidemia e do fechamento de algumas áreas da cidade. Muita desgraça passando na tela, mas pelo menos a luz tinha voltado.
- Oi mãe! Nossa, que bom que a senhora chegou. A gente estava ficando preocupado - disse o jovem Jacó,  um rapaz alto e magro, com cara de assustado - Já fecharam tudo, né?
- E aí, mãe, beleza? Tá ficando feia a coisa, né? - disse Jacó, irmão gêmeo de Esaú, com um sorriso largo na sua cara magra.
- Está tudo bem por aqui? - disse Jéssica, preocupada, levantando as mãos  - Não se aproximem de mim, espera aí. Jacó, pega a água sanitária - disse Jéssica, tirando a roupa e colocando tudo em um saco, que Esaú colocou do lado de fora..
- Mãe, relaxa - falou Esaú - Todo mundo aqui vai pegar essa merda. Não adianta passar esse álcool falsificado, tomar todos esses cuidados, se a gente mora tudo amontoado, igual galinha na granja.
- Não fala assim - disse Jacó, fazendo o sinal da cruz, como tinha aprendido com a avó - Já está todo mundo nervoso, não fica botando pilha.
- Vocês vivem em outro mundo - disse Esaú contrariado.
- Pode até ser - disse Jacó - Mas o que importa agora é que mamãe chegou e está tudo bem com ela - disse, se voltando para a mãe.
- Meninos, parem de brigar - disse Jéssica, confortando os dois com sua voz - Vai ficar tudo bem. Agora, me contem. Tem alguma novidade que preste do noticiário?
- Só desgraça - disse Esaú, praguejando - Vai ter toque de recolher, mas só em alguns pontos da cidade. Deve ser para os ricos poderem movimentar a economia, enquanto os pobres vão ficar presos. A não ser aqueles que trabalham para permitir que os ricos fiquem em casa.
- Como a sua mãe, por exemplo, não é, meu filho? - disse Jéssica, passando a mão na cabeça de Esaú - Lembre-se que alguém tem que colocar comida na mesa.
- Tá bem, mãe - prosseguiu Esaú, respondendo com algum desdém - O governo anunciou também que os benefícios vão ser mais restritos. Não sei se a gente vai conseguir dessa vez.
- Se a gente não está entre os que vão receber, morando em um barraco e com uma renda que mal dá pra comer direito, quem então vai ter direito? - perguntava Jacó em tom de choro.
- Meus filhos, vamos esquecer disso por enquanto. Vamos ficar um pouco juntos, quietos, abraçados aqui embaixo da coberta. É a melhor coisa que a gente pode fazer agora - falou a mãe, com um gosto de sangue na boca.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

PLANTÃO MÉDICO: PESADELO

Pombas arrulhavam, crianças corriam e um casal de idosos jogava damas enquanto Lúcia caminhava sobre a grama que fazia cócegas nas solas dos pés. Um ruído sereno de água, vindo da fonte ao fundo, harmonizava o crepúsculo com uma sensação de conforto. Logo à frente, um leve aclive, onde seus filhos esperavam o abraço da mãe, emoldurados pelos reflexos avermelhados do céu.

Suspirou, enchendo o coração de alegria. O aroma verde do parque confortava seu corpo, esgotado pelos dias de plantão no hospital (no meio da epidemia de COVID-19), e trazia de volta as tardes com o avô. As pombas levantaram voo, fazendo um barulho de folhas e liberdade, e Lúcia percebeu, em um arbusto atrás do banco, um pequeno duende que lhe sorria simpaticamente.

Ao se aproximar do ser encantado, um vento frio deixou-a toda arrepiada. Esticou a mão para tocar a criatura de singelas orelhas pontudas e um chapeuzinho lindo. Com um espasmo de ódio, contudo, o duende se transtornou em um monstro horrível, de olhos vermelhos, dentes afiados e um bafo de morte. Assustada, Lúcia gritou desesperada, tentando se desvencilhar daquela boca cheia de escuridão. Uma floresta tropical tinha aparecido à sua volta, densa como a escuridão, e o morrinho, com seus filhos em cima, se ergueu em uma montanha enlameada e íngreme.

Ainda conseguiu ouvir os dois filhos chamando na mata, antes deles desaparecerem na fumaça da neblina. A escuridão que se abateu sobre ela, de dentro pra fora, sufocava sua respiração, e fazia o ar parecer uma gosma. Queria gritar, mas estava sufocada, e não podia mais. Fugiu desesperada, para se defender daquele pequeno e obsceno monstro, e começou a correr atrás dos filhos, fantasmas agoniados que precisavam muito da ajuda dela. Uma mãe sempre sabe quando os filhos estão precisando!

A mata era mais escura que a própria noite, e Lúcia morria de medo de não conseguir mais sair. Se enroscava nas trepadeiras e cipós e ouvia os vultos dos filhos se desfazendo em meio aos estalos. Os pés descalços afundavam na lama, e o barro que entrava pelos vãos dos dedos dava aflição e pesava os pés. Se arrastava pelo caminho, se aprofundava no medo, mas não conseguia se aproximar dos filhos. Não dava pra saber onde eles estavam. A mata era um amontoado de árvores, idênticas naquela umidade que encharcava os ossos e esfriava a alma, e impunha uma repetição de movimentos: tombos, escorregões, subidas.

Lembrou que precisava voltar para o hospital. Tinha que encontrar os filhos rápido. Em pânico, lembrava das histórias de terror que sua velha avó caiçara contava. Seguia andando, procurando, escorregando. Arranhou o rosto. O sangue escorria misturado com o suor, e Lucia gritava o nome dos filhos. Não sabia para onde estava indo, nem conseguiria fazer o caminho de volta. Quanto mais caminhava, mais a floresta se fechava sobre ela, mais apertado ficava o seu peito.

A trilha fazia uma curva, subindo e contornando uma enorme pedra, revelando uma casinha no meio das árvores, mais ao fundo. Sabia que seus filhos estavam lá dentro. As mães sempre sabem. Estava toda suja de lama, cansada e angustiada. E ainda tinha que voltar a tempo para o plantão. A casa de madeira apodrecida, verde de musgo e tempo, escondia olhos profundos que pediam por socorro. Chegou lá, passo a passo vencendo o terror, abriu a porta devagar, mas não encontrou ninguém. Não podia mais voltar para a mata, não aguentava, mas tinha que encontrar os filhos, de qualquer jeito.

A noite ia ficando mais escura e fria. A névoa pesada fazia os barulhos da mata parecerem mais próximos e graves, e a lama deixava tudo gosmento e difícil. Queria poder desistir. Caminhar era cada vez mais distante, e só seguia porque ouvia, ao longe, um pedido de socorro sussurrado ao vento. Precisava descobrir onde estavam os filhos, de qualquer maneira.

Lutava para sair da segurança precária da cabana quando percebeu que estava sendo observada. Tentou sair do lugar, mas não conseguia se mexer. Estava perdida, molhada, com frio e com muito medo. Em um canto da casinha, nas sombras da porta, viu dois olhos vermelhos e um sorriso amarelo de dentes muito afiados. O monstro pulou em cima dela, de boca aberta.

Acordou com seu grito.

Estava no hospital, deitada em cima de uma maca, descansando no intervalo do plantão. Respirou fundo, sentiu bem o cheiro de realidade que exalava da sala - uma mistura de cândida com suor - e passou a mão no rosto. Chegou a sorrir quando notou que o duende do sonho se parecia com o Dr. Faustino, responsável pelo plantão.

Um paciente desconhecido estava na maca ao lado. Não lembrava dele ali, e só percebeu que estava acompanhada quando ouviu um gemido, um gorgorejo. Virou para ele, e sujeito se levantou, pulando na direção dela. Antes que pudesse gritar, ele tampou sua boca e montou em cima dela, apertando seu peito e deixando Lucia totalmente indefesa. A última coisa que viu, dentro do seu horror, foram os mesmos olhos vermelhos do seu pesadelo.

terça-feira, 28 de maio de 2019

O ÚLTIMO EM PÉ

Sobre ideia do Rafael Maieiro

onde estará o último guerrilheiro
o que tombou na última
trincheira
?

que sobrou das barricadas
da Comuna de Paris
Spartacus e Dandara
o último de Canudos
da revolução soviética
?

desapareceu
foi assassinado
o primeiro índio desconhecido
que disse em voz alta
não mais
?

E agora, o que será de nós
que digo para
meu filho
as crianças em tiroteios
todas as crianças do mundo
?

o pequeno refugiado afogado,
a Somália, todas as favelas
os humilhados e os invisíveis
nossos filhos

Saibam todos: o último que resistiu
e que ainda resiste
é você mesmo
leitor do meu século, anti heroi
:

cabe a ti derrotar o apocalipse

domingo, 14 de janeiro de 2018

Fica mais um pouco, vai ter Boulos


“apresento em lugar do registro partidário todos os cem tomos de meus livros militantes” Maiakovski, A Plenos Pulmões
A candidatura de Guilherme Boulos está em debate no PSOL. Esse papo, no entanto, tem profundas implicações para fora do partido. Faremos uma conferência eleitoral com representação de todos os setores do partido ainda no primeiro trimestre, para tomar essa decisão de forma democrática mas sem que a gente se perca em um exaustivo processo de prévias. Defendo, com todo respeito aos demais postulantes, que o PSOL aprove o nome de Guilherme Boulos, mostrando maturidade e contribuindo com o processo de reorganização da esquerda, com ousadia e firmeza.
Essa reorganização da esquerda pós lulismo já começou, pelo menos desde 2013, com seus altos e baixos, idas e vindas. Esse é o elemento central do cenário político para nós. O pólo mais dinâmico desse processo é a Frente Povo Sem Medo, que sob a liderança do MTST consegue reunir diversos movimentos sociais em torno de uma plataforma contra o golpe e contra a retirada de direitos. O PSOL também ocupa um espaço de destaque nesse processo.
Com sua candidatura, o PSOL pode se transformar, ser mais popular e mais amplo. Na campanha vamos nos aproximar do MTST e de outros movimentos sociais, além dos artistas (por que não?), setores da classe média, gente descontente com o PT e gente procurando alternativa. Aumentar nossa relação com as classes populares certamente nos fará muito bem! Da mesma forma como será positivo o partido se ampliar e entrar em contato com gente de esquerda, mas que não reza em nenhuma das nossas cartilhas.
As eleições de 2018 serão um momento decisivo para o ciclo que vai se seguir. Mesmo com todas nossas fragilidades, acertamos na política, buscando uma crítica ao lulismo sem cair no moralismo anti petista. A maior expressão disso foram nossas posições na luta contra o golpe e a nossa participação na frente povo sem medo. Agora é hora de dar consequência a toda essa movimentação, e apresentar uma alternativa de voto e de política.
Não somos a única direção desse processo, mas acho decisivo que nosso pensamento esteja em contribuir de forma solidária e militante em um movimento que consiga agregar amplos setores da sociedade em torno de um programa de transformação social, contra a direita e por mais direitos. O PSOL pode ser decisivo nessa tarefa. E o resultado final pode ser algo muito maior do que temos hoje!
Essa renovação está expressa nas diretrizes programáticas da plataforma Vamos!, que prevê a reversão de todas as medidas anti populares de Temer e um plano para recuperar o emprego no país, coloca a questão das opressões no centro das formulações e aposta em um modelo de desenvolvimento que preserve o meio ambiente. Também está em sua construção, realizada de forma pública e participativa, através de dezenas de encontros presenciais e uma plataforma digital.
A reorganização da esquerda passa por um programa renovado. Esse programa deve partir da crítica das novas configurações do trabalho, do desemprego e o precariado, e também do racismo e do machismo como estruturantes na sociedade de classes. Adota o ponto de vista do ecossocialismo, combate o imperialismo e a financeirização e busca novas formas de pensamento e vida que respeitem a natureza e sejam mais solidárias. Procura formas mais democráticas e participativas de organização, desde a vida no partido até a gestão pública, e usa as novas tecnologias de comunicação para conectar pessoas em nossa causa.
Podemos ter, no próximo período, uma candidatura com expressão, apoio de movimentos sociais, especialmente do MTST, inserção social e que defenda um programa radical de transformação social. E que pode ser decisiva no futuro da esquerda do país. Não temos o direito de perder essa oportunidade.
Guilherme Boulos, liderança do mais importante movimento social do país hoje, tem um sólida formação e é um lutador social calejado. É o melhor nome para ser o porta voz do projeto de reorganização de uma nova esquerda pós lulismo nas próximas eleições, sendo candidato a presidente da república pelo PSOL.

domingo, 5 de março de 2017

O LADRÃO E OS ASSASSINOS

500 mil no bloco dá Daniela Mercury. Na Augusta o refugo. Saio de casa e vejo a confusão, correm atrás de um adolescente negro. Encurralam ele junto a grade de casa, querem bater, querem arrastar, e ele se agarra com toda força. Entro no meio dos marmanjos, empurro e grito.

São ambulantes que alegam ser ladrão, que aquele rapaz e outros tinham roubado o carnaval todo e agredido outros vendedores. Só grito: não vai matar o moleque, chama a polícia. No meio dos agressores percebo um playboy que estava passando e ficou interessado em linchar ladrão.

Pedrinho assustado no portão, falo pra Nathalia ligar 190 e segurar ele. Dois ou três deles se voltam pra mim, me acusando de passar pano pra ladrão. Insisto, firme, em chamar a polícia, ameaçando os agressores. Um deles se volta pra mim pra me intimidar, me peitando agressivamente. Me afasto, com algum medo e vejo Nathalia dizer pra eles: olha a criança, tá assustando o menino.

Olho para o Pedro e ele está chorando. Insisto para Nathalia chamar a polícia e cuidar dele. Graças à intervenção dela o que brigava comigo se acalma. Falo com ele que não pode matar. O playboy fala que não adianta chamar a polícia. Um outro segue gritando que eu estava passando pano pra ladrão. Mas agora já nos falávamos, aos gritos, sobre justiça e justiçamento, ninguém mais tentava bater em ninguém. Pedro está pra dentro e o que me intimidou agora pede desculpas para a Nathalia.

Quando conseguem desgrudar o adolescente da grade, tentar arrastar ele para outro lugar. Na hora vejo a polícia descendo a rua e me dirijo a eles. Falo, acelerado, que estão para linchar o moleque. O PM me retruca, perguntando se eu sei o motivo, como quem diz para não defender bandido. Respondo decidido: pegaram porque é ladrão, mas não tem lei? Vão matar o moleque! Pra que existe polícia, juiz?

Os policiais chegam e a situação acalma. Os agressores, como se estivessem certos, saem andando, nem precisam ser liberados, e o rapaz é detido, “para averiguação”. Ora, independente que tenha feito, naquele momento era vítima, mas preto que era não foi tratado assim. Ainda falei com os policiais, que insistiram na tese da defesa do bandido, me perguntando: e se fosse com o senhor? Nem digo ao policial, negro como o menino, o absurdo da situação, mas me acalmo quando dizem: não é santinho, mas tá aqui inteiro, pode ir tranquilo.

Na confusão, Nathalia trancou o Pedro para dentro e nos acalmamos falando pra ele procurar a chave na bolsa da mãe, tarefa em geral inglória. Quando saem, coloco os dois no táxi, ainda meio confuso com tudo que aconteceu. Ligo para ela depois e ela me conta que ele nos agradeceu porque não deixamos o adolescente apanhar.