terça-feira, 30 de junho de 2020

O ÚLTIMO JOGO

Joãozinho falou para seu colega de sala, todo orgulhoso: Meu pai foi no último jogo de futebol que teve torcida no estádio. O pequeno Davi tinha chegado com uma bola nova, tão bonita que brilhava. Queria ser amigo dele, tocar pra ele fazer gol, dar um abraço e correr para a torcida. Queria contar para ele a história do fantástico jogo no Itaquerão.

Mentira sua, falou Davi, sem querer saber dele. Faz muito tempo que não tem mais torcida no estádio, seu pai nem era vivo. Claro que era, se defendeu Joãozinho. Desde, sei lá, o século passado, tá tudo suspenso por causa do vírus, resolveu Davi. Joãozinho, triste e bravo, chorou com a desfeita. Saiu da escola com os olhos vermelhos, mas não disse palavra. O pai nunca tinha tempo para nada, Joãozinho não queria incomodar. Depois de um tempo caminhando em silêncio, acabou contando que o Davi não quis jogar com ele, e que tinha duvidado do jogo no Itaquerão. Mateus ficou triste junto do filho. Ninguém podia duvidar daquela história. Joãozinho só queria jogar bola. Pai, será que você pode jogar comigo? Só um pouquinho? Mateus estava muito atarefado, como sempre, pendurado no telefone, preocupado e correndo de um lado para o outro. Deu um sorriso distante para o filho. Mateus virou criança, de tantas saudades que sentiu, e o Itaquerão surgiu na sua frente, enorme e mágico. Ninguém podia duvidar daquela história. Até sentiu o pai segurando na sua mão, aquela presença intensa que o guiava pela vida, até o estádio. Saudades é mesmo uma coisa enorme. Como ia saber que aquela seria a última vez? Todo domingo, o velho Mário botava a camisa do Corinthians, branca e cheia de furinhos, escrito Kalunga em cima da barriga redonda, abria uma cerveja e chamava o filho para verem o jogo. Aquela hora era só dos dois. Tudo ficava parado lá fora, enquanto a bola rolava. Eles gritavam, pulavam, cantavam os gritos de torcida. O pai ficava igual um maluco, xingando os jogadores e brigando com o juiz. Torciam com toda força: Vai, vai, vai! Sai, zica! Toca, toca! Quando era gol, o pai ficava tão feliz que se abraçavam. Mateus assistia encantado aos jogos. Só queria ficar ao lado do pai. No começo, era apenas participar daquele momento, dividir a emoção, aquela entrega toda, tão alegre e especial. Mesmo se o time perdesse, gostava de estar ali, com o pai. Antes de entender sobre a vida e as derrotas, que as pessoas queridas morrem e os heróis são os que mais perdem, aprendeu sobre o futebol. Quando o pai ficava triste, Mateus não gostava. Queria que o time ganhasse, pro pai ficar feliz. Quando viu, já torcia pelo Corinthians. Depois do almoço de domingo, antes um pouco do jogo, Mateus falou queria ir ao estádio. Estava sonhando com isso faz tempo. O pai nem respondeu. Ele nunca respondia. Era uma pessoa calada e grande, um montanha de pedra. Olhava para o filho, quieto, com um sorriso distante na cara. Será que era pra ter feito essa pergunta? O pai assistia o jornal todo dia. Na hora dos esportes, Mateus ficava namorando os gols e olhando a torcida. Mas agora só ouvia falar desse coronavírus. De mal humor, o pai dizia que não tinha dinheiro para nada, e reclamava da doença e do governo. O coronavírus fez milhares de vítimas na China, e está se espalhando - disse a moça de cabelo bonito na televisão. O filho perguntou, depois de ver uma careta: O que foi, pai? Que é esse tal de coronga vírus? Não é nada, riu enquanto repetia o erro da criança. Jantaram arroz com bife, ovo e farinha. O pai não falou uma palavra, mas deixou o pequeno tomar toda a garrafa de guaraná. O pequeno Mateus era criado pelo velho Mário. Se virava meio sozinho, enquanto o pai trabalhava de pintor, ajudante de pedreiro, meia colher. Depois da escola, obrigação que não podia faltar, ficava a tarde toda na rua, esperando a hora do pai chegar em casa. Quando tinha jogo, torciam juntos. O Corinthians estava mal. Será por isso que ele estava sempre tão chateado? Ficava mal junto dele, que só fazia beber e fumar na frente do celular. Alguma coisa não estava legal. Em uma sexta-feira, o velho Mário chegou feliz em casa, radiante. Foi até estranho. Disse que tinha arrumado um emprego e que ia fazer uma surpresa para o Mateus. Estava falante como nunca, contando que tinha recebido um dinheiro, fazendo piada de tudo. Mateus também ficou inebriado. Queria muito saber qual era a surpresa tão anunciada, mas ele não falava de jeito nenhum. Calma, calma. Mal dormiu aquela noite. Passou o sábado agitado e, quando chegou a hora de deitar, Mateus não se aguentava mais. Já tinha acordado quando o pai bateu na porta do quarto, domingo de manhã, mandando vir para o café. Rápido, que a gente vai sair depois do almoço. É hoje a surpresa, menino. Foram de metrô, Mateus elétrico e o pai calado. Linha vermelha, sentido zona Leste. O pequeno perguntava: Já estamos chegando? O que é? Calma, calma, repetia o pai como uma canção de ninar. Joãozinho, vou te fazer uma surpresa, disse o pai. Esquece esse menino Davi. Foi uma explosão de alegria: O que é a surpresa? Mateus sabia como era a ansiedade que o filho sentia. O pequeno saltava, fazia perguntas por todos os lados, gritava de curiosidade. Calma, calma, recitava ecoando o velho Mário, que também lhe dizia desde aquela tarde distante: Calma, calma. O trem foi se enchendo de gente com a camisa do Corinthians, de risadas e expectativas, comentários sobre o jogo, palavrões proibidos que o pai falava, cantos de torcida que iam aumentando conforme iam se aproximando do destino. O estádio surgiu no horizonte como uma pirâmide, um monstro e uma maravilha, um exército em formação. Um elefante sorridente que convidava o menino para uma aventura incrível, lá no alto do morro. Mateus vibrava de alegria. O pai, que não era muito bom em ser feliz, deu um abraço meio desajeitado no filho. Preparado para ver o jogo? Saíram do metrô em Itaquera, naquela confusão. Passaram das catracas e estavam no meio de uma multidão em preto e branco. Mateus nunca tinha visto tanta gente junta antes. Olhava em torno, sem saber pra que lado ir, quando o pai puxou pelo braço e falou pra tomar cuidado, ficar ligeiro. O mundo balançava ao som da torcida, desde a passarela que sai do metrô e passa por cima da radial. Comeu um sanduíche de linguiça e tomou um guaraná, enquanto o pai escolheu um pernil e uma gelada. Quanto custa a camisa do timão, parceiro?, perguntou o velho Mário para um dos muitos vendedores que se espalhavam pelo caminho que contornava o morro em direção à entrada dos torcedores. No calor daquela tarde de domingo ensolarada, o pequeno coração do menino parecia com os fogos de artifício que subiam ao céu. Vestiu o manto, como disse o pai (nem sabia o que era manto), e seguiu de mãos dadas, o coração colado com o pai, que lhe sorria discretamente.
Passaram do portão, entraram no estacionamento, e o menino Mateus já podia sentir a vibração no ar. As pessoas sorriam para ele, tão bonitinho ao lado do pai, olhando para todos os lados, e perguntavam quanto é que seria o jogo. Respondia qualquer placar, cinco, seis, dez a zero. O pai ria alto. Dizem que o futebol é uma coisa mágica. Achou estranho ser revistado na entrada mas logo esqueceu, quando viu o campo, fantástico tapete mágico. O sol iluminava a arquibancada, e sentaram nos lugares marcados. Ficou olhando aquilo tudo: as torcidas organizadas eram uma força da natureza, o campo, brilhando mais que tela de vídeo game, e os jogadores, anunciados um a um, eram figurinhas prateadas que ganhavam vida. O pai, calado, sorria enquanto ouvia a escalação do time. Era Mateus, agora, quem levava o filho para o futebol. Não foram ao estádio, porque depois do vírus não tem mais jogo com torcida, mas iriam jogar bola, os dois. Nem sabia em que estado estava a quadra que ficava na praça perto de casa, mas isso pouco importava. No caminho, parou em uma loja e compraram uma bola, bem colorida, e uma camisa do Corinthians para o menino, que não serviu direito, ficou meio grande, como as saudades que sentia do pai. Dizem que o futebol é uma coisa mágica. Mateus era bom de bola quando criança. Jogou muita pelada na rua, e era um dos primeiros a ser escolhido no racha com os amigos. Mas fazia tempo que não jogava. Como o Corinthians daquela tarde de domingo, também não estava começando muito bem, chutando torto para o gol, errando os lances, respirando pesado cada vez que a bola saía pela lateral. Assim como o Novorizontino, time modesto e aguerrido do interior, Joãozinho também surpreendia, correndo muito e se esforçando para jogar bem. Era o jogo da vida deles. Mateus estava em êxtase. Pai, o que está escrito no placar? Pai, o que aqueles policiais estão fazendo de costas para o jogo? Pai, o que eles estão falando é palavrão? Pai, onde está a torcida do outro time? Pai, tô com sede. Pai, pai, pai… E o pai respondia tudo com poucas palavras, muitas vezes só passando a mão, calado, na cabeça do menino. Joãozinho adorava jogar bola, mas o pai nunca podia, sempre tinha que trabalhar. A quadra estava descuidada: a tela tinha uns buracos, as linhas pintadas no chão tinham estavam apagadas, e até tinha algumas rachaduras no chão de concreto. Era um estádio mais glorioso que o Itaquerão. Joãozinho corria, e o pai, que tinha até desligado o celular, rebatia. O velho Mário iria gostar de ver cena. Mesmo em marcha lenta, o Corinthians era melhor que o Novorizontino. O time do interior se defendia com todas suas forças, e o time da capital, mesmo com uma falta de vontade de dar raiva, ensaiava uns lances perigosos na área do outro time. O velho Mário brigava com os jogadores, xingava o juiz e os atacantes adversários, passava a mão na cabeça do filho Mateus e levantava para mais um canto da torcida. Vamos, vamos Corinthians, essa noite, teremos que ganhar. O pequeno também cantava com a torcida, e até repetia os palavrões proibidos, com toda força que conseguia. Em um dos bons poucos bons lances do Corinthians, o bom volante Cantillo roubou a bola no meio do campo, e os dois foram se levantando lentamente, inclinando o corpo em direção do campo como um animais prontos para o bote. Cantillo tocou para Pedrinho, enfiado entre os zagueiros, que lançou Vagner Love de primeira. O estádio inteiro respirou fundo, e até as colunas de concreto ficaram mais tensas quando o atacante recebeu a bola na lateral, avançou, cortou para o meio e rolou a bola para trás, de volta para Pedrinho. O tempo congelou quando o atacante jovem e magrelo do Corinthians chutou, com força, da entrada da área, e explodiu quando a bola entrou. A arquibancada vibrou e o pai abraçou e beijou Mateus. Mas o pai se calou de repente, e Mateus ficou sem entender o que estava acontecendo. Todo o estádio murchou. Não dá pra acreditar que vão chamar essa merda do VAR, esbravejava o pai. Mateus nem sabia o que era isso, mas logo entendeu que não era coisa boa. A porcaria do juiz anulou o gol. Mateus não acreditava. Xingou um palavrão horrível, e o pai nem falou nada. Será que ele voltaria a ficar triste, como tinha andado nos últimos tempos? Não ficou. Como uma onda gigante, a torcida se levantou, e até o sol se assustou. O pai ficou logo de pé, e começaram a cantar: Timão, eô! O jogo estava difícil. O Corinthians, jogando mal, não conseguia vencer a defesa do Novorizontino. Léo Baiano ganhava todas no meio, e o zagueiro Bruno Aguiar comandava a área. O time da capital não se conformava, ficava cada vez mais irritado e afobado, errando mais e mais. Em um desses erros, o inevitável aconteceu. A bola perdida no meio, Léo Baiano avançou, o menino respirando rápido se levantou, Capixaba e Léo Santiago corriam pelas pontas, o pai gritava para que alguém chegasse, os zagueiros do Corinthians recuavam tentando fechar, a arquibancada em pânico. Capixaba recebeu a bola e ultrapassou Fagner, cruzando no meio da área, uma bomba que encontrou o pé amaldiçoado do atacante caipira Léo Santiago. Atingiu a meta do goleiro Cássio como um tiro, uma despedida, uma pedra no rim. Gol do Novorizontino. Mateus não acreditava no que estava acontecendo. Ficou triste e preocupado. O pai caiu na cadeira, lutador nocauteado, e passou a mão no rosto. Respirou fundo e se encheu de toda a desgraça da vida. Foi quando a torcida organizada, com seus bumbos e cantos, se levantou mais uma vez. Que coisa linda as bandeiras tremeluzindo, aquela massa de pessoas vibrando e empurrando, cantando pelo time, um vulcão jorrando lava sobre o campo, iluminando a tristeza até virar paixão. O juiz apitou o final do primeiro tempo. No intervalo, o velho Mário botou o menino no ombro, e foi até o canto, colando na grade bem próximo das torcidas organizadas. Ali, até o ar balançava com o grito desesperado de milhares de corações corintianos. Aqui tem um bando de louco, louco por ti Corinthians. Empurrado pela nação, o time avançava, atacava, fazia chuveirinho na área, ciscava na frente do gol. Mas a bola não entrava. O pai estava inquieto, insatisfeito, e Joãozinho não conseguia mais ficar parado na cadeira. Podia ter só sete anos, mas cantava para empurrar o time, para dar força ao pai, para que tudo acabasse bem. O jogo estava chegando no final, se transformando em uma tortura, um castigo, uma provação. Luan bateu escanteio para o Corinthians do lado direito, a torcida cantando pra valer, ajudando a levar a bola, que girava como o planeta, e o pequeno Mateus viu, em cima dos ombros do pai, o zagueiro corintiano Gil subindo na marca do pênalti entre os defensores, como um monumento, um messias, acertando na bola com a testa, com a decisão de Deus e o jeito do Rui Chapéu. Gol. Empatou. Não dava tempo para mais nada, o juiz apitou o final da partida. Dizem que o futebol é uma coisa mágica. A bola veio rolando no meio da quadra. Mateus lembrou do gol do Pedrinho, anulado pelo VAR, e se preparou. Agora estava com seu filho, e suas memórias pulavam como a torcida do Corinthians naquele domingo. O velho Mário morreu do vírus algumas semanas depois, e Mateus nunca mais pode assistir um jogo com ele, nem lhe apresentar o neto. Acertou um chute três dedos, da entrada da área, sem chance para o goleiro. Joãozinho vibrou, deu um salto de alegria. Tomaram um guaraná, que estava guardado na mochila, vestiram suas luvas e máscaras e voltaram para casa: - Esquece esse menino Davi. Seu avô, o velho Mário, ficaria orgulhoso te vendo jogar - disse Mateus, enquanto passava a mão na cabeça do filho. Joãozinho lhe sorria em resposta, dentro daquela camisa muito maior que ele.



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