quinta-feira, 18 de junho de 2020

QUARENTENA NO MOINHO

A rua fedia a mijo e podridão. O cheiro gosmento de miséria escondia o aroma  sensual dos vírus e bactérias que infestavam a região. Enquanto atravessava a multidão de drogados e mendigos, espalhados pelas calçadas, deitados no chão, Jessica lamentava a noite mal dormida, febril e prenhe de calafrios, praguejando contra a vida. O nascer do sol estava bonito como uma hemorragia celeste. O frio da madrugada estava diminuindo, e começou a fazer calor dentro do casaco amarelo de plástico impermeável. Passou álcool nas mãos e ajeitou a máscara assim que entrou na estação de trem. Será que esse álcool que o Juninho vendeu é confiável?
Saía todos os dias do cômodo onde morava na Favela do Moinho, junto dos trens e do barulho, com a noite ainda escura e os dois filhos dormindo. Trabalhava como faxineira, prestadora de serviços, em uma empresa de limpeza de imóveis de luxo. No caminho para a estação Julio Prestes, para pegar o trem com destino à zona sul, atravessava a Praça Princesa Isabel, com aquela imensa estátua de um cavalo desfigurado, meio arrebentado. Morando em barracas improvisadas, homens e mulheres faziam suas necessidades por toda parte, e o fedor atravessa o ar como uma adaga, um cadáver. Muitos criavam pequenos animais, e em um dos cantos funcionava uma feira de produtos roubados e comidas estranhas (as possíveis).
Estava preocupada com as inspeções sanitárias no caminho para o trabalho. Se fosse diagnosticada com alguma doença, teria que ficar em casa, e daí não ganharia o dia de serviço. O salário, que já era pouco, não ia dar para o mês todo. Lavou a mão outra vez com álcool gel e se dirigiu para os bloqueios. Logo atrás das catracas, uma fila de soldados com pistolas de teste nas mãos verificavam a temperatura de todos. Qualquer variação e a pessoa seria conduzida para a quarentena - dizem que para exames e registro.
Precisava chegar no trabalho, ia se atrasar desse jeito. Seguia na fila da catraca de cabeça baixa, sem chamar a atenção. Se os guardas não reparassem nela, talvez nem fosse testada, no meio daquela multidão de máscaras e celulares. O guarda apontou o termômetro na sua cabeça, e olhou com suspense para o mostrador. Depois de um instante de agonia, mandou ela passar, todo grosseiro, como se tivesse ficado frustrado com o negativo do teste.
***
No quadro dos funcionários, sua escala de trabalho estava diferente, mas não reclamou. Afinal, pouco importa de quem é a sujeira que vai limpar. Seu irmão, Helinho, é segurança de banco, corre muito risco para ganhar pouco, e o resto da família está toda desempregada, vivendo de bico, criando pequenos animais (porcos, galinhas), vendendo o almoço para comprar a janta. Ela pelo menos tinha casa, e precisava continuar trabalhando para manter esse mínimo de dignidade. Geralmente era escalada para limpar o mesmo condomínio, onde já a conheciam e sabiam que era limpinha e honesta, mas dessa vez foi diferente. Tanto faz. O que importa é trabalhar. Se perdesse o emprego, talvez tivesse que ir morar em uma barraca, ou algo assim.
Primeiro foi escalada para limpar um endereço comercial, o que não era comum: um escritório de advocacia grande e chic. Não gostou daquele ambiente frio e liso: preferia limpar casas e apartamentos. Os advogados, a maioria jovem, muito bem vestidos e sorridentes, pouco conversavam. No grande salão no último andar de um prédio espelhado, Jéssica se preocupava em limpar as bancadas com os computadores, o espaço da máquina de café, os arredores da mesa de reunião. Um ambiente gelado, o ar condicionado no último, tudo muito sério e sóbrio. Gente importante, pensava Jéssica, enquanto esfregava os braços de frio e passava as costas das mãos no nariz que estava escorrendo. Uma janela imensa, aberta para a cidade, observava tudo pelo alto.
Naquele frio silencioso, sentiu que estava sendo vigiada, como se tivesse fazendo algo errado, ou estivesse com as calças sujas. Sem aviso, um funcionário de máscara fechada, macacão de proteção e luvas amarelas disse para Jéssica que ela teria que fazer um exame. Assustada, recuou e colocou a vassoura entre eles, se protegendo, mas foi abordada por trás por dois guardas, fortes e embrulhados em roupas laranja, que logo a dominaram e espetaram uma agulha em seu braço. Tinha mesmo notado que uma jovem advogada, de vestido preto e salto alto, fez uma cara de susto ao vê-la, mas achou que fosse só o nojo de sempre. Só pode sair da sala pra onde foi empurrada, para terminar a limpeza, quando recebeu o resultado negativo do teste.
Na parte da tarde foi para um bairro mais afastado, um condomínio de rico cheio de guardas e guaritas. A limpeza agora era em uma mansão imensa, com colunas na entrada e um enorme jardim na frente, cheio de carros grandes. Foi recebida pela governanta, uma mulher alta e de cara fechada, que usava luvas de borracha e um avental branco, além da máscara e uma certo ar de superioridade. Teresa, com alguma distância, orientou Jéssica a limpar os quartos do casal e das crianças, e avisou que os meninos estavam doentes, descansando. Jéssica ficou um pouco preocupada, mas a governanta foi firme quando disse que a limpeza tinha que ser feita, deixando claro que não queria saber de reclamação.
Subiu as escadas para limpar o quarto dos doentes, mastigando sua indignação, redobrando a atenção com todo seu medo e ódio. Que será que eles tinham? Será que era contagioso? Se ficasse doente, não poderia ir trabalhar, o seria um problemão, uma grana que não dava pra perder. Tinha um verdadeiro hospital instalado ali, e não deixou de notar a cara de preocupação das enfermeiras. Mesmo assustada, apertou sua máscara e limpou tudo com o máximo de cuidado. Observava metodicamente todos os lugares onde encostava, vigiava sua postura para não tocar no rosto, passava álcool em gel nas mãos até arder. Mas ficava sempre com a impressão que algum detalhe tinha passado despercebido, que o álcool não seria suficiente, que a máscara não era adequada. Foi embora um pouco mais cedo, com uma boa gorjeta e a recomendação de não comentar com ninguém sobre os doentes. Talvez pudesse até ser chamada outras vezes, para outro período curto de trabalho com um extra muito interessante. A governanta falava disso como uma proposta irrecusável. E era mesmo. Também era um suborno, mas podia conviver com isso.
Na volta para casa, pegou um ônibus lotado até o terminal de trem, em Santo Amaro, mais lotado ainda. Ficou com medo da aglomeração. Desceu na estação Júlio Prestes, depois de muitas baldeações, passou álcool nas mãos, apertou sua bolsa contra o corpo e saiu marchando pela rua. Já durante o aperto da viagem começou a se sentir mal, como se o incômodo que a impediu de dormir à noite tivesse retornado com mais força. Devia procurar um médico, mas não tinha tempo ou dinheiro.
Jéssica foi piorando. A febre não cedeu e a tosse só aumentou, e agora estava com falta de ar e dor no peito. Pegou um adiantamento no trabalho e resolveu que não dava mais para esperar. Na praça tinha uma feira onde era vendido de tudo, inclusive consultas médicas e remédios para desesperados. O serviço, mesmo ilegal, era muito procurado, e, apesar de ser pouco confiável, era caro. Jéssica foi atendida por um médico de cabelos brancos, depois de muito tempo de espera e negociação. O consultório de Isaque era um par de cadeiras com uma maca ao fundo, incomodamente à mostra de quem quer que passasse pela rua. Entrevistou Jéssica com uma voz serena que brotava do fundo de sua de sua pele negra, abafada pela máscara. Perguntou dos sintomas e pediu para medir a temperatura:
- Sinto dizer, mas tem um novo vírus por aí - disse o médico, calmamente, passando a mão devagar na testa - Como sabe, a política é sempre abafar, pra evitar o pânico e manter as pessoas trabalhando. Mas dessa vez é perigoso mesmo.
- Um novo vírus? Como assim? Eu estou doente? - perguntou Jéssica, falando mais alto e desafinando um pouco.
- Aparentemente. Não dá pra saber com exatidão, porque não tem teste disponível, mas tudo indica que sim - disse o médico com a mesma calma fingida, e seguiu explicando - É um vírus que veio da Europa, coisa de gente grã fina. Como você trabalha com esse povo, é bem possível que tenha sido infectada. Os sintomas são os mesmos, e sua febre está aumentando, junto da infecção no pulmão.
- Mas eu não posso ficar doente. Preciso sustentar a minha casa. Se eu ficar doente, não vou poder trabalhar, e vou ser demitida - lamentava Jéssica, com os olhos esbugalhados e as mãos se agitando - O que aconteceu, como será que eu peguei? Por que essa mais essa desgraça agora, meu deus?
- Minha senhora, ficar doente não é uma escolha - disse o médico em um tom firme - Também não dá pra saber como pegou, nem sei se isso interessa muito. Agora, não tem outra coisa pra fazer a não se tratar, descansar, comer minimamente bem.
- Eu não posso fazer nada disso. Simplesmente não posso. Não posso perder meu emprego, e muito menos posso ficar em casa, doente, descansando. Ai, moço, não sei o que fazer - disse Jéssica enquanto escapavam algumas lágrimas.
- Eu acho que consigo ajudar você a ir trabalhar - falou como se suspirasse - Te dar um antitérmico e um interferon. Por um pequeno valor a mais na consulta, claro. Mas, pelo que me disse, não vejo alternativa para você.
- Isso vai me curar, doutor?
- Não vai curar nada. Nem remédio para o novo vírus existe ainda - disse Isaque com uma honestidade impactante - Ninguém nem sabe muito bem que vírus é esse ou como é que a gente pode tratar essa coisa. Mas dá para  atacar os sintomas. Você vai conseguir ir trabalhar, pelo menos por um tempo. E vai parecer melhor, que é mais importante. E a gente torce pra você não piorar muito, principalmente quando estiver lá fora - falou enquanto apertava os olhos já cansados, já preenchendo uma receita e pegando um remédio em uma caixa atrás da sua cadeira.
Saiu da consulta ainda pior, carregando a preocupação e, agora, também a doença. Precisava conseguir ir trabalhar pelo menos mais alguns dias, nessa casa nova que pagava mais (apesar dos perigos), pra fazer um dinheiro, se preparar para a hora mais difícil que viria logo. Tinha conseguido atravessar as últimas epidemias. Depois da fase do medo, muita gente ficaria doente, as coisas iam apertar, e o controle do governo ia espremer a comunidade, igual bagaço de laranja. Precisava de uma reserva de dinheiro e de mantimentos, precisava estar pronta para tudo.
Lembrou dos seus filhos, que deviam estar em casa, mesmo contra todos os seus pedidos para que ficassem na casa da avó. Mesmo preocupada, tinha o coração sempre aquecido por aqueles meninos. Que Deus abençoe. E agora, que sabia que estava doente, o que fazer? Os meninos não podem pegar essa praga, não ia suportar infectar os próprios filhos. Podia até ouvir a voz de Esaú dizendo que não ia dar nada, apoiado na soleira da porta, fumando, e Jacó reclamando do outro lado, de cabeça baixa enquanto ajeitava a cama para a mãe descansar. Não tinha o que fazer, pensava enquanto caminhava entre as barracas na praça de volta para casa.
***
Conseguiu passar bem a semana com os remédios receitados por Isaque. Ele não vale nada, mas é bom no que faz. Mas, na segunda-feira, quase não conseguiu levantar da cama. Seu corpo estava quente e amolecido, sua cabeça estava pesada e congestionada. Estava enjoada, com dor de barriga, muita tosse e falta de ar. Só que precisava ir trabalhar. O chefe já tinha avisado que quem faltasse ia ser mandado embora. Não podia perder esse emprego de jeito nenhum. Tinha que conseguir, pelo menos até que fosse decretado o isolamento total. Só mais um pouco.
Acordou cedo no outro dia, e os meninos ainda estavam dormindo. Comeu algumas bolachas de água e sal, acompanhadas de um preparado à base de leite e café. Lavou as mãos e o rosto, enxaguou a boca e tomou uma dose cavalar de remédios - antitérmico, antiviral, analgésico e até um ansiolítico. Será que prestam esses remédios que o Juninho vende? Já tinha ficado muito doente nas outras pandemias, mas sobreviveu. Beto, que morava com ela e ajudava na casa, morreu faz quatro anos, na epidemia de sarampo. Foi difícil. Mas doeu mesmo quando morreu seu primeiro filho, doente, e o segundo, de fome, durante o último isolamento total. Não podia deixar mais isso acontecer. Precisava ir trabalhar, custe o que custar.
Ficou meio dopada com os remédios todos que tomou, mas pelo menos conseguiu sair de casa. Afinal, é pra isso que os remédios servem, te colocar em pé para ir trabalhar. Quando chegou na estação Julio Prestes, estava com a visão turva e um pouco tonta. Nem viu os guardas atrás das catracas, mas lembrou que eles existiam e aprumou o corpo, ajeitando a máscara e olhando para frente, com firmeza. Não podia ser pega, de jeito nenhum. Assim que passou a linha dos bloqueios, deu uma bela tropeçada, arruinando sua discrição e caindo sobre as pessoas que estavam à sua frente.
Os guardas da estação, rinocerontes de uniforme negro, levantaram seus escudos e se protegeram do movimento da massa de pessoas se deslocando. Com sua queda, Jéssica acabou empurrando outras pessoas na sua frente na fila, que caíram sobre os guardas, causando um pequeno tumulto. A fila continuou andando, e Jéssica seguiu junto. Nem percebeu que passou pelos guardas sem ser examinada, enquanto a fila se reorganizava e os guardas retomavam a sua posição, empurrando as pessoas e apontando os termômetros na cara delas. Jéssica entrou no trem e passou álcool nas mãos. Sua tosse ecoava na tosse de outras pessoas doentes dentro do vagão. Nas telas de anúncios, avisos sobre higiene pessoal e cuidados com o vírus.
Como o escritório de advocacia estava fechado, naquela manhã Jéssica foi direto para a mansão. A situação por lá estava cada vez pior. O cheiro de doença atravessava as colunas gregas e impregnava o jardim cheio de carros importados e flores ressecadas. A governanta não atendia mais a porta, porque também tinha ficado doente. O pai até tentou cuidar das coisas, com todos os outros membros da família de cama, mas ele também acabou ficando mal recentemente. A casa não estava cercada pelas forças da vigilância sanitária, como acontecia onde ela morava. Entrou e dirigiu-se para o quarto, que ela limpava com cada vez mais cuidado e medo.
O cheiro de carne podre invadia o ambiente e impregnou na sua máscara. O corpo do irmão falecido, que não podia ser removido sem avisar a vigilância sanitária, já estava em avançada decomposição. Podre mesmo, cheio de bicho, se desfazendo, fedendo e lembrando a todos da doença. Ao seu lado, os dois irmãos, de fraldas e acamados, com cuidados precários, pioraram muito desde que a governanta se afastou. Além das macas, e de um conjunto de aparelhos médicos, o quarto estava uma bagunça, muito sujo: uma pilha de roupa usada em cima de uma cadeira, as fraldas nojentas amontoadas no canto, transbordando do lixo, e até marcas de secreções espalhadas pelas paredes. A janela, fechada para diminuir o fedor na vizinhança, compactava o ar irrespirável, cáustico, deixando Jéssica com vontade de vomitar.
Ajudou a trocar os dois meninos, com muita dificuldade, e cobriu melhor o irmão morto. Nessa hora, ouviu o pai das crianças gritando do outro quarto, pedindo ajuda. Jessica demorou a atender, achando que eram os pedidos folgados de sempre. O velho gritou mais uma vez, arranjando forças não sei da onde. A essa altura, já não havia mais ninguém trabalhando na casa, nenhuma enfermeira ou cuidadora fixa. Jéssica atravessou o corredor e entrou no quarto do casal. A senhora, muito magra, com os olhos pulando das órbitas, espumava sangue e se debatia em uma violenta convulsão. O velho estava desesperado e não sabia o que fazer, ainda mais sem funcionários. Jéssica também não sabia o que fazer, e fugiu desesperada. Saiu correndo, com a mão na máscara, como se fosse tampar a doença, com a qual tinha convivido de perto por tanto tempo. Voltou pra casa, chorando e tossindo.
***
No caminho de volta, muito menos gente que de costume. Desceu na estação Julio Prestes, atravessou com medo a concentração de usuários de drogas - o fluxo - que estava por ali aqueles dias. Como será que esse povo sobrevive nessas condições? Será que não ficam doentes, que adquiriram alguma espécie de mutação, algum super poder ao contrário? Sentia-se cada vez mais doente, tossindo muito, com febre e moleza, caminhando de volta para casa. Os comércios fechados, o transporte vazio, o barulho dos passarinhos dava uma estranha sensação de que o mundo tinha parado.
No Moinho não tinha quarentena. O sol quente iluminava as ruas e vielas cheias de gente que ia e voltava do trabalho - faxineiras, seguranças, enfermeiras, garis e lixeiros, pequenos traficantes. Na frente dos barracos, humildes e apertados, as pessoas se reuniam para conversar sobre a nova doença que estava chegando. Crianças passavam correndo sobre as poças d’água, cachorros mexiam no lixo, e o boteco estava cheio desde antes da hora do almoço. Ficou preocupada com os filhos, que estavam há dias sem trabalhar, e imaginava o que podiam estar fazendo.
O caminho também estava mais sujo e descuidado. O lixo acumulado na esquina, próxima da entrada da favela, bem junto da saída do viaduto, se espalhava ocupando a calçada e a rua. Jessica logo percebeu que estava faltando água quando viu a imensa fila se formando ao lado do muro da escola. A raiva subiu das entranhas. Teria que voltar até ali, de lata na mão, e camelar com a água de volta para casa, depois de tudo o que tinha passado naquele dia infernal. Pelas ruas, além do lixo, muitas ambulâncias, policiais, agentes de saúde. Certamente, alguma coisa estava para acontecer, mas só pensava em chegar em casa e descansar.
Torcia, agora, para que pelo menos tivesse luz. Seu barraco puxava a energia do poste da rua, assim como seus vizinhos. Pela movimentação nas portas dos barracos, gente de toda sorte que não podia ficar em casa, logo notou que também ficaria no escuro. O efeito dos remédios estava passando, e sentia cada vez mais pior. Não teria forças para buscar água, nem que quisesse. Deitou na cama, torcendo para a bateria do celular durar até o despertador tocar no outro dia. E para que conseguisse sobreviver àquela noite.
***
No outro dia, a favela todo amanheceu cercada. A luz do giroflex e o barulho das sirenes anunciavam o toque de recolher. As forças de segurança tinham fechado tudo, ninguém entra e ninguém sai do Moinho. A polícia sanitária foi acionada, com seus uniformes de astronauta e caminhões prateados. Para sair é preciso apresentar alguma justificativa: uma receita médica, a carteira de trabalho, alguma autorização judicial. Quem fosse pego pra fora sem justificativa seria preso. Dizem que seriam usados nos testes para as novas vacinas. Jéssica já tinha visto isso em outros anos, e sabia que as coisas ainda iam ficar muito piores.
A manhã ainda estava fria quando saiu para ir à farmácia. Tinha dormido mal, mas fingia estar melhor. Não queria deixar os meninos preocupados. No caminho, dois rapazes com idade para serem seus filhos passaram em uma moto. Sem capacete, foram parados pela polícia sanitária e obrigados a voltar, não sem um belo de um esculacho. Uma jovem guarda, com megafone nas mão, gritava para as pessoas avisando, com a simpatia que conseguia, do bloqueio que fechava o bairro. O comandante da operação explicava para um grupo de senhoras que pareciam querer ir à igreja, com uma estranha tranquilidade no meio daquele caos, que era melhor pedir à Deus de casa mesmo, enquanto elas levantavam as mãos para o céu. 
Na linha de contenção, uma cerca de cavaletes e guardas armados que isolava o bairro do resto do mundo, disse que precisava comprar remédios, mostrando sua receita. O guarda nem deu atenção pra ela, só mandou se afastar balançando a mão, apontando para o lado. Em longas filas, pessoas pretas e pardas pedia autorização para sair, olhando para baixo enquanto eram verificados pela polícia sanitária. Jéssica viu os guardas analisando os documentos de uma senhora grisalha, revistando um jovem magro na outra fila, e mexendo, mais à frente, com a moça bonita vestida de branco, que deveria ser enfermeira ou babá. Alguns pedintes esmolavam por ali mesmo, mas ninguém ajudava. Depois de aguardar um tempo na fila, resolveu voltar para casa, quando notou que quase ninguém estava conseguindo sair.
Ficou puta, e voltou para casa reclamando, alternando resmungos e gritos de raiva. “Essa podridão dessa doença não veio daqui. E agora a gente que tem que se foder, com essa merda de bloqueio. Lá no outro lado os ricos não estão trancados, vigiados, com uma coleira no pescoço. Tenho certeza que foi um porra desses que trouxe essa sujeira de vírus para cá. Eu lembro do médico falando, e vi, com esses olhos que a terra há de comer, a situação dos doentes daquela mansão”.
Tinha que passar no mercado, mas quase desistiu quando viu o tamanho da fila. Só entrou porque não tinha outra alternativa: precisava comprar um pouco de comida e uns produtos de limpeza, pelo menos. Do lado de dentro, uma pequena guerra civil estava sendo travada, entre senhoras que lutavam pelos vidros de desinfetante e álcool em gel, os seguranças que queriam evitar os pequenos e inevitáveis furtos e os jovens preocupados com seu estoque de papel higiênico. O dono, na porta, observava tudo com os braços cruzados e a cara fechada. Jéssica conseguiu um pouco de arroz e frango, ovos e água sanitária, por um preço bem maior que na semana passada.
A favela tinha virado um caldeirão, onde fervia toda aquela pobreza no caldo do isolamento total. Uma ambulância recolhia um corpo, que saía carregado pelos familiares, enrolado em um lençol. Quanto tempo teria ficado dentro da casa? Em breve, corpos estariam empilhados pelas ruas. Finalmente chegou no seu barraco, onde estavam seus dois meninos deitados na cama, assistindo TV, com cara de assustados, passarinhos querendo a asa da mãe. O telejornal falava da epidemia e do fechamento de algumas áreas da cidade. Muita desgraça passando na tela, mas pelo menos a luz tinha voltado.
- Oi mãe! Nossa, que bom que a senhora chegou. A gente estava ficando preocupado - disse o jovem Jacó,  um rapaz alto e magro, com cara de assustado - Já fecharam tudo, né?
- E aí, mãe, beleza? Tá ficando feia a coisa, né? - disse Jacó, irmão gêmeo de Esaú, com um sorriso largo na sua cara magra.
- Está tudo bem por aqui? - disse Jéssica, preocupada, levantando as mãos  - Não se aproximem de mim, espera aí. Jacó, pega a água sanitária - disse Jéssica, tirando a roupa e colocando tudo em um saco, que Esaú colocou do lado de fora..
- Mãe, relaxa - falou Esaú - Todo mundo aqui vai pegar essa merda. Não adianta passar esse álcool falsificado, tomar todos esses cuidados, se a gente mora tudo amontoado, igual galinha na granja.
- Não fala assim - disse Jacó, fazendo o sinal da cruz, como tinha aprendido com a avó - Já está todo mundo nervoso, não fica botando pilha.
- Vocês vivem em outro mundo - disse Esaú contrariado.
- Pode até ser - disse Jacó - Mas o que importa agora é que mamãe chegou e está tudo bem com ela - disse, se voltando para a mãe.
- Meninos, parem de brigar - disse Jéssica, confortando os dois com sua voz - Vai ficar tudo bem. Agora, me contem. Tem alguma novidade que preste do noticiário?
- Só desgraça - disse Esaú, praguejando - Vai ter toque de recolher, mas só em alguns pontos da cidade. Deve ser para os ricos poderem movimentar a economia, enquanto os pobres vão ficar presos. A não ser aqueles que trabalham para permitir que os ricos fiquem em casa.
- Como a sua mãe, por exemplo, não é, meu filho? - disse Jéssica, passando a mão na cabeça de Esaú - Lembre-se que alguém tem que colocar comida na mesa.
- Tá bem, mãe - prosseguiu Esaú, respondendo com algum desdém - O governo anunciou também que os benefícios vão ser mais restritos. Não sei se a gente vai conseguir dessa vez.
- Se a gente não está entre os que vão receber, morando em um barraco e com uma renda que mal dá pra comer direito, quem então vai ter direito? - perguntava Jacó em tom de choro.
- Meus filhos, vamos esquecer disso por enquanto. Vamos ficar um pouco juntos, quietos, abraçados aqui embaixo da coberta. É a melhor coisa que a gente pode fazer agora - falou a mãe, com um gosto de sangue na boca.

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