quinta-feira, 21 de maio de 2020

PLANTÃO MÉDICO: PESADELO

Pombas arrulhavam, crianças corriam e um casal de idosos jogava damas enquanto Lúcia caminhava sobre a grama que fazia cócegas nas solas dos pés. Um ruído sereno de água, vindo da fonte ao fundo, harmonizava o crepúsculo com uma sensação de conforto. Logo à frente, um leve aclive, onde seus filhos esperavam o abraço da mãe, emoldurados pelos reflexos avermelhados do céu.

Suspirou, enchendo o coração de alegria. O aroma verde do parque confortava seu corpo, esgotado pelos dias de plantão no hospital (no meio da epidemia de COVID-19), e trazia de volta as tardes com o avô. As pombas levantaram voo, fazendo um barulho de folhas e liberdade, e Lúcia percebeu, em um arbusto atrás do banco, um pequeno duende que lhe sorria simpaticamente.

Ao se aproximar do ser encantado, um vento frio deixou-a toda arrepiada. Esticou a mão para tocar a criatura de singelas orelhas pontudas e um chapeuzinho lindo. Com um espasmo de ódio, contudo, o duende se transtornou em um monstro horrível, de olhos vermelhos, dentes afiados e um bafo de morte. Assustada, Lúcia gritou desesperada, tentando se desvencilhar daquela boca cheia de escuridão. Uma floresta tropical tinha aparecido à sua volta, densa como a escuridão, e o morrinho, com seus filhos em cima, se ergueu em uma montanha enlameada e íngreme.

Ainda conseguiu ouvir os dois filhos chamando na mata, antes deles desaparecerem na fumaça da neblina. A escuridão que se abateu sobre ela, de dentro pra fora, sufocava sua respiração, e fazia o ar parecer uma gosma. Queria gritar, mas estava sufocada, e não podia mais. Fugiu desesperada, para se defender daquele pequeno e obsceno monstro, e começou a correr atrás dos filhos, fantasmas agoniados que precisavam muito da ajuda dela. Uma mãe sempre sabe quando os filhos estão precisando!

A mata era mais escura que a própria noite, e Lúcia morria de medo de não conseguir mais sair. Se enroscava nas trepadeiras e cipós e ouvia os vultos dos filhos se desfazendo em meio aos estalos. Os pés descalços afundavam na lama, e o barro que entrava pelos vãos dos dedos dava aflição e pesava os pés. Se arrastava pelo caminho, se aprofundava no medo, mas não conseguia se aproximar dos filhos. Não dava pra saber onde eles estavam. A mata era um amontoado de árvores, idênticas naquela umidade que encharcava os ossos e esfriava a alma, e impunha uma repetição de movimentos: tombos, escorregões, subidas.

Lembrou que precisava voltar para o hospital. Tinha que encontrar os filhos rápido. Em pânico, lembrava das histórias de terror que sua velha avó caiçara contava. Seguia andando, procurando, escorregando. Arranhou o rosto. O sangue escorria misturado com o suor, e Lucia gritava o nome dos filhos. Não sabia para onde estava indo, nem conseguiria fazer o caminho de volta. Quanto mais caminhava, mais a floresta se fechava sobre ela, mais apertado ficava o seu peito.

A trilha fazia uma curva, subindo e contornando uma enorme pedra, revelando uma casinha no meio das árvores, mais ao fundo. Sabia que seus filhos estavam lá dentro. As mães sempre sabem. Estava toda suja de lama, cansada e angustiada. E ainda tinha que voltar a tempo para o plantão. A casa de madeira apodrecida, verde de musgo e tempo, escondia olhos profundos que pediam por socorro. Chegou lá, passo a passo vencendo o terror, abriu a porta devagar, mas não encontrou ninguém. Não podia mais voltar para a mata, não aguentava, mas tinha que encontrar os filhos, de qualquer jeito.

A noite ia ficando mais escura e fria. A névoa pesada fazia os barulhos da mata parecerem mais próximos e graves, e a lama deixava tudo gosmento e difícil. Queria poder desistir. Caminhar era cada vez mais distante, e só seguia porque ouvia, ao longe, um pedido de socorro sussurrado ao vento. Precisava descobrir onde estavam os filhos, de qualquer maneira.

Lutava para sair da segurança precária da cabana quando percebeu que estava sendo observada. Tentou sair do lugar, mas não conseguia se mexer. Estava perdida, molhada, com frio e com muito medo. Em um canto da casinha, nas sombras da porta, viu dois olhos vermelhos e um sorriso amarelo de dentes muito afiados. O monstro pulou em cima dela, de boca aberta.

Acordou com seu grito.

Estava no hospital, deitada em cima de uma maca, descansando no intervalo do plantão. Respirou fundo, sentiu bem o cheiro de realidade que exalava da sala - uma mistura de cândida com suor - e passou a mão no rosto. Chegou a sorrir quando notou que o duende do sonho se parecia com o Dr. Faustino, responsável pelo plantão.

Um paciente desconhecido estava na maca ao lado. Não lembrava dele ali, e só percebeu que estava acompanhada quando ouviu um gemido, um gorgorejo. Virou para ele, e sujeito se levantou, pulando na direção dela. Antes que pudesse gritar, ele tampou sua boca e montou em cima dela, apertando seu peito e deixando Lucia totalmente indefesa. A última coisa que viu, dentro do seu horror, foram os mesmos olhos vermelhos do seu pesadelo.

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