quinta-feira, 28 de julho de 2011

O HOMEM QUE SÓ TINHA FUTURO

O auditório lotado exalava a alegria da cerimônia de colação de grau. A cerimônia era a metáfora de uma porta, início de uma longa estrada, sendo que os graduandos estavam na grande sala oval antes da porta que agora atravessariam. Completando um ciclo, um rito de iniciação marca a abertura da porta, pois o rito consiste nos procedimentos necessários para a entrega da chave. Quando seu nome foi chamado percebeu em um lampejo que já estava na estrada, e não conseguia enxergar porta alguma, pois ele era um homem que só tinha futuro.
Recebeu o diploma com absoluta indolência e, orador da turma, dirigiu-se à tribuna: "Escolhi seguir a carreira de administração, pois nessa área é preciso ter, dizem, visão de futuro. E nada poderia ser melhor para mim, pois sou um homem que só tem o futuro. Talvez não compreendam ao certo o que quero dizer, e mesmo considerem algo abobado ou impossível o que vou lhes confidenciar. Mas, antes que pensem que eu estou usando de algum sofisma ou metáfora, quero dizer que minha afirmação, por mais absurda que pareça, deve ser encarada ao pé da letra.
"Claro que isso é impossível fisicamente, ainda que alguns experimentos quânticos sugiram alterações no fluxo do tempo, simultaneidade de eventos, chegando a considerar uma condição na qual o tempo ainda não existia, tal que a pergunta sobre o que antecedeu a origem não tem resposta. Só que não é disso que eu quero falar, ainda que a posição do observador influencie o objeto.
"Quero falar do futuro como única realidade válida para mim: nenhuma realização, todos os projetos; nenhuma mágoa, somente procura; nenhum prazer, toda sabedoria. Ao receber o diploma eu nada realizei, apenas abri outras oportunidades para seguir caminhando. Perco a liberdade por não ter presente enquanto ganho a plenitude por ser só esperança. O caminho apresentado, seguro e preparado, com suas etapas fixadas e seu calçamento calcificado, não está bem sinalizado: no passado mora a enganação.
"O futuro é o primogênito do nada: sem ele não haveria sentido para as coisas. Toda razão está no passado, todo raciocínio no presente: no futuro mora o sentido. O futuro é uma casa sempre distante. Não importa o quanto você ande, nunca alcançará a casa. Mas não se deve desistir – a derrota é o castelo do presente, tão alta que vira passado. As dificuldades podem ser imensas, mas sempre há um modo de alcançar o futuro: no futuro toca uma música que atrai até os mais céticos. Trata-se de compreender que entre o aqui e o futuro há uma distância a ser percorrida e não um tempo que vai passar: o tempo é só uma sequência de instantes.
Tudo ainda vai acontecer, e só sei conjugar os verbos no futuro – não como um profeta, mas como uma criança. Essa condição seria, talvez, um pouco angustiante, pela falta de referência e pela perda da experiência, mas ao invés de lamentá-la só sei ver as expectativas. Assim como a infância, quando o futuro é um campo sem caminhos traçados coberto pelo fresco orvalho da manhã. Talvez exista a maturidade, mas só o sábio dirá que sempre há mais algo a aprender".
Desceu do púlpito e, antes do olhar de estranhamento e reprovação virar o crescente murmúrio que quase desandou em briga, ausentou-se do ambiente de forma tão imprevista como o tom de divagação de seu discurso alcançou os ouvidos dos presentes. O momento de suspensão do comum – a cerimônia que servia como justificativa para que todos seguissem o caminho já dado que as pesadas mãos do passado ergueram como estradas romanas – depois da confissão pública que fizera, apareceu como um grande teatro, grande arena, cujos alicerces apodreceram, e nenhum engenheiro mais consegue explicar a escolha dos materiais.
Sua vida, somente futuro, impedia a compreensão normal do mundo, pois no início era o verbo (e ele não conhecia os princípios), e só o verbo se entende; impedia também sua presença nos acontecimentos (o presente lhe era estranho), e todos seus pensamentos se ancoram no futuro, sem moral e sem juízes, sem tradições e sem fatos para serem julgados. Saiu do prédio e uma infinidade de opções lhe apareceu no mesmo golpe de vista, como que um instante longamente estendido, e percebeu que já estava caminhando, e que sempre e só estivera caminhando, e que simplesmente seguia os caminhos.

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